Rua Montenegro, 276

08/06/2018

Elas moíam a carne na máquina manual, à manivela, que elas prendiam no canto do mármore da bancada da cozinha. Entravam grandes cubos de carne vermelha, toda limpa, sem nervos, e saía aquela massa uniforme, moldada pelos furos do moedor. Depois de catadas as fibras restantes, a carne voltava pra máquina, muitas vezes, com cebolas em cubos, que iam ficando quase líquidas quando moídas. E depois vinha a pimenta síria, a canela, o coentro em grão moído, o pimentão vermelho, a água gelada, o burgol* que não se deve deixar de molho pra não amolecer demais. E as mãos para misturar tudo. Para servir, a cebola em gomos, as folhas graúdas de hortelã e o azeite para bem regar o quibe cru.

A salada, fatuche, salpicada com o pão árabe torrado na medida pra desmanchar em contato com o suco de limão, o azeite, os tomates frescos, o cheiro verde e o pepino crocante. O segredo era cortar as pontas do pepino e esfregá-las no corte, para tirar o amargo, o leite ruim. A casca ficava, para fazer a digestão.

Couve-flor com taratô, kbebat, ataife, esfihas abertas e queijo com misky. Babahanush, houmus, azeite, azeite, azeite. Azeitonas pretas, carnudas, gordas. Coalhada seca, zahtar, pão papel em dias de festa, chancliche. E mais azeite.

As folhas de uva envolvendo arroz e carne moída com pimenta síria, a capa de filé no fundo da panela, um pouco de massa de tomate, tempo, paciência. Cheiro doce de família e canela, e o Arak do vovô, que enchia a sala com o anis volátil, prontamente turvo ao contato com a água, mágica para as crianças. Pistache, amendoim, terços de âmbar na mesa, bandejas enormes de latão dourado, café no bule árabe, que se deixava pousar antes de servir, sem coar. Tapetes, tapetes e mais tapetes. Unhas vermelhas, música e coisas douradas.

A mesa posta na sala de jantar para os adultos e na sala de almoço para as crianças, com toalhas de plástico.

No quintal de cimento, os tamancos de madeira, o tanque cantando, o varal cheio, as empregadas e o fumo de rolo no cachimbo na hora do descanso, no quarto ao fundo do quintal, em cima da escada torta e caiada. O pente de ferro para esticar os cabelos com henê, as imagens do sagrado coração de Jesus, a nossa senhora aparecida na micro-televisão com luz negra, a foto retocada, muito azul-turquesa, do longínquo casamento na Paraíba. Os uniformes xadrezinhos, o rádio sempre ligado, o pano na cabeça, ave-maria às seis da tarde, a missa de domingo.

No terraço, fiel testemunha da minha história, o piano que mora aqui comigo e me acompanha nesta saga saborosa, perfumada e cheia de amor que é a minha vida. Música, a única síntese possível.

Eu e vovô Jacob na casa da Rua Montenegro,

Na minha vida sempre houve uma amendoeira. Foi com elas que aprendi a gira dos ciclos naturais de todas as coisas vivas, foi com elas que aprendi sobre o tempo. Na frente do apartamento onde cresci eram tantas, e tão grandes, que, se a gente esticasse o braço, dava pra tocar os galhos que quase entravam pela janela. Elas filtravam a luz e perfumavam a casa em dias de chuva. Os passarinhos cantavam o dia todo, os morcegos morcegavam pela madrugada, jogando amêndoas ruidosas nos capôs dos carros, e a gente acompanhava ninhos sendo construídos, ocupados e desocupados, ano após ano. Quando mudei de casa, as amendoeiras passaram a servir de anteparo para que eu pudesse tomar banho de porta aberta, misturada no verde mais carioca depois do mar, da mata atlântica e do gramado do Maracanã. Dizem que elas vieram lá das Índias. Gostaram tanto daqui que cresceram e se multiplicaram, e foram chamadas de amendoeiras-da-praia.

Aprendi as estações do ano assim: a amendoeira e eu, espelhadas. Ela por fora, eu por dentro. Ela vermelha, amarela e laranja, eu desapegando e desacelerando em meu outono pessoal. Ela pelada e eu calada, hibernando enquanto a primavera não vinha. Aí, ela explodia em brotos e as folhas tenras começavam a desenrolar, e lá vinham as vespas beber o mel da floração, e o cheiro enjoativo do pólen entrava em casa e a esperança brotava no meu coração, ensaiando a plenitude frondosa do verão. Eu, imperdoavelmente jovem, acreditava na promessa das cigarras que cantavam na minha janela, convocando para a felicidade obrigatória e urgente da estação-definição desta cidade: no verão, todos os sonhos se realizarão, os amores virão, as festas serão incríveis, o carnaval será o melhor de todos, a felicidade encantada florescerá no pôr do sol vermelho. Com tudo isso, nada mais importa além de um mergulho no espelho dourado, um mate gelado com limão, uma partida de frescobol.

O Rio cutuca a juventude perene que se esconde em algum canto de nós, como aquele broto de folha que espera sua hora de eclodir. O Rio quer a gente forever young, arrastando chinelos, com o biquini debaixo da roupa, pro caso de dar tempo de dar aquele mergulho rapidinho. Todos os dias, o Rio escancara a sua beleza indecente perguntando: “E você? Vai ficar aí parado, enquanto eu estou aqui, resplandecente, translumbrante sob o ouro do sol?” E a gente ouve e quer obedecer, com eternas saudades das longas férias escolares de verão, das cigarras cantando, dolentes, nas amendoeiras, do corpo moído de sol e de sal.

O Rio deste dezembro de 2017 arde em chamas de diferentes fogos, calores, revoltas, medos, agitos, encantos e fervos mil. O Rio de Janeiro está pegando fogo, sob o sol abrasador do verão implacável que se anuncia, e pelo sangue quente correndo nas veias de quem quer viver esta cidade mais e melhor. São tempos para reerguer a monumental maravilha caída, para devolver o Rio para quem nasceu ou escolheu viver aqui. Espelho de seu povo, a beleza do Rio mora na praia, nas encostas cobertas de florestas, nas águas fartas, no morro e no subúrbio. Belezas diversas, pra todos os gostos. Mas que ninguém se engane: a beleza desta cidade depende, mesmo, é da mistura.

Que cantem as cigarras! É verão na Cidade Maravilhosa!

 Esse sol, porque tinha de tanto brilhar / Anunciar no meu peito o amanhã pra depois sumir / E deixar tão mais negro meu céu, minha noite

melhor não tê-los

24/07/2015

Não que eu não quisesse, não que eu quisesse. Foi a vida. Eu queria ser cantora. E ser cantora era uma estrada florida, que me levava ao infinito sem dia pra voltar, pra desbravar mundos desconhecidos, a bordo de estranhas naves. E pra isso eu tinha que estar sem bagagem. Eu queria ser cantora.

Muito nova, fui ao médico e comecei a tomar pílula. Anos e anos, sem ninguém saber. Me apaixonei, muito. Namorei namoros longos e apaixonados. Mas na hora de escolher ficar ou ir, escolhi ir. Pra cantar, desbravar algum lugar. No meu campo de visão tinha sempre um barzinho e um violão. Sempre uma roda de música, um festival, pessoas e mais pessoas. Uma aula de canto, uma apresentação, um palco, uma gig, mil coisas que eu nem sabia que existiam, tudo por fazer, sempre quis tudo.

E, também, fui quase sempre infeliz no amor: grandes encontros e histórias desacertadas. Jamais tive um homem com quem eu quisesse ter um filho. Eu, aturdida com tantos quereres de coisas e gentes e lugares e liberdade. De forma que, quando me pediram em casamento pela primeira vez, com esse sonho de família, me imaginei presa do lado de dentro duma porta de cofre de banco, blindada, protegida por um segredo inviolável, vendo o saboroso mundo passar lá longe, pelas grades da janelinha da minha cela. E assustada eu disse não.

O tempo passando, eu cantando, a ideia sempre lá, na cadeirinha de pensar do porvir. Por dentro, fiz lista de nomes, idealizei maneiras de educar, conviver, brincar. Mas toda vez em que eu pensava nas mochilas de marca, nos tênis, nos gadgets, eu desistia. Cantando não vai dar pra comprar o videogame da moda. E, pra mim, filho sempre é filho da mãe. Pai é uma hipótese que, em 70% dos casos, se apaixona por outra, quando fica meio sem espaço na casa, logo que a criança nasce, e só se interessa de novo, quando a criança começa a falar. Numa dessas, vai morar em Botucatu com a namorada nova e manda 100 pratas por mês, quando lembra. Os que ficam são raros. E tem aquilo, né? A cena em que jamais me vi: eu botando criança pra dormir e o cara tomando cerveja na Lapa. Não dá pra mim. Eu também quero tomar cerveja na Lapa.

Aí pensei que qdo eu tivesse dinheiro, ia ter filho sozinha, com um amigo gay, um vizinho, inseminação. Mas cada vez que pensava que eu nunca mais ia poder virar uma noite sem hora pra voltar, e que nunca mais ia poder dormir o dia todo ou viajar e me apaixonar por um nativo e ficar mais uns dias, eu postergava. Imaginava a vida efervescendo e eu bloqueada pela maternidade, desmulherizada, santificada e chata. Not yet.

O ponteiro do tempo, essa verdade irrefutável, apontava pro vermelho. A luz piscava. Mas já? Quando fui morar com meu namorado, autorizei meu melhor amigo a me impedir de ter filhos com ele. Quando vi que tinha ficado casada muito mais tempo do que imaginaria ficar, aos 45 do segundo tempo, pensei em ter um filho com ele. Mas a vida deu aquele olé e ele teve filho com outra. Ah, os deuses e suas ironias… Destino de filha de Nanã, disse a mãe de santo.

Sofrendo horrores, me permiti fazer as perguntas mais cruéis: ter filho por quê? Tem que ter filho? Todo mundo tem que ter filho? Adotar é uma opção? Uma mulher só é completa se tiver filho? Como vai ser ter 50 anos e me ver sem filhos? Ter 70 e não ter netos? Ficar velha sem filhos pra cuidar de mim?

O alarme disparou, me olhei no espelho: escolhe agora! Quer ou não quer? Sem fazer drama e sem adiar o drama: quer ou não quer? Quem me conhece sabe que faço o que quero, sem precisar de ninguém. Vou lá e faço. Mas não sou irresponsável. E cada vez que eu olhava minha conta bancária e, mesmo assim, reafirmava os laços com a realidade que eu escolhi viver, eu perguntava: cabe um filho nessa escolha? Eu sabia que se fosse pra bancar escola, skate e bicicleta, eu ia ter que inverter as prioridades e cantar nas horas vagas. Pra ter um filho, queria au grand complet, com tudo que tinha direito. “Então você não quer ter filho”, diziam as mães extremosas, “quem quer ter filho não pensa em nada disso e tem”. Eu pensei. E nunca consegui me ver dizendo coisas tipo “depois que a gente tem filho, a gente não escolhe mais, “nunca mais dormi, nunca mais comi”. Nunca achei a menor graça nisso.

Cheia de amor no coração, ah, um bebezinho, um filhote, um ser pra acompanhar de perto e ver crescer, pra melhorar quem sou, pra povoar o mundo de gente legal, pra me humanizar… muitas vezes chorei sozinha agarrada à dureza da passagem do tempo, vendo o meu juízo final se aproximando e pensando que não, essa eu não seguro sem grana, essa não seguro sozinha e nem vou voltar pra casa da mamãe, com um filho debaixo do braço. E, sobretudo, não vou abrir mão da minha carreira da forma que eu quero que ela seja. Não cantar nas horas vagas, mas ser realmente, integralmente, fulltime, cantora. Xeque-mate.

Você não está sendo egoísta?, me perguntaram mil vezes. Ora, egoísta é quem tem filho pra dizer que tem, pra atender à expectativa da sociedade, pra posar no porta retrato, pra ter companhia, pra ter alguém pra chamar de seu. Egoísta é quem tem filho sem ter maturidade, sem poder, à tôa, com qualquer um. Vejo um bando de pais oprimidos pelos filhos, pais surdos, autocentrados, impacientes, desinteressados. Filhos solitários, perdidos, sem afeto e escuta, sem intimidade com os pais. O mundo estaria muito melhor sem eles. “Ah, mas você fica presa e feliz!” Eu poderia realmente amar ser mãe e ter filhos, mas presa e feliz, não. Nunca ficarei presa e feliz. Eu sou cantora. Todos os sonhos do mundo eu troquei por esse. Chorei muito, mas fui corajosa e sincera nas perguntas que fiz a mim mesma, e dizia, no espelho: se você quer ter filho, tenha! Simples assim, ainda dá tempo! Pra não passar a eternidade arrependida, lamentando não ter feito a escolha quando era possível escolher. Qual o quê…

Cada vez que eu pensava em ter que acordar a criatura sonolenta, às 6h, pra botar pra escola, durante anos intermináveis, ou num adolescente deprimido intransponível ou naquele filho adulto frustrado, infeliz como a maioria, se matando pra pagar aluguel, sem orgulho da própria vida, sem eu ter nada além de amor e música pra dar, eu tinha certeza de que não, não queria ter filhos. Sacanagem jogar alguém no mundo pra viver nesta selva.

Até arrisquei, sem empenho, engravidar de um namoradinho que também queria, sem muita convicção. Não rolou. Investiguei sobre adoção e inseminação e cheguei a falar sobre isso com um amigo, um peguete e tal. Mas na hora H, não fui em frente. Até que, dores vividas e curadas, aceitei a realidade. É, não deu pra ter filho. Não que eu não quisesse. Não que eu quisesse.

Eu escolhi. E não, não vou gerar filhos. Vou amar minhas afilhadas e seus filhos, minha sobrinha e seus filhos, se tiverem. Vou amar os filhos do caminho, dos amigos, amar meus amigos e família, vou cuidar de quem a vida me pedir pra cuidar, vou ser maternal na hora que precisar. Meu coração está aberto. De vez em quando sinto uma tristezinha por não saber como é ter esse laço de amor com alguém. Mas tem muitas coisas que a gente nunca vai experimentar, mesmo. Me emociono, amo bebês, amo crianças e elas me amam. E que bom que o mundo está cheio delas! A emoção é o movimento da vida.

Tem uma coisa que eu não sabia: com o tempo, as perguntas silenciam e a gente fica em paz. A vida segue em frente. Escolher é o nosso maior poder. Mesmo cheia de conflitos humanos, eu fiz uma escolha e assino embaixo. E aquela velha estrada continua florescendo, cheia de múltiplos infinitos…

2015-07-06 04.29.28

Era um belo dia de sol no bairro carioca do Leblon, que fica na beira da praia mais calma da cidade, menos badalada, mais vazia. Fui encontrar um amigo. Fazia sol de verão em pleno inverno, temperatura alta, mar perfeito. Levei duas tangerinas numa sacolinha, uma para cada um de nós. Conversamos, mergulhamos, o mar subiu molhando nossas coisas, a canga ficou cheia de areia. Peguei na sacolinha, lembrei da tangerina, peguei uma pra mim: um estouro. Meu amigo não quis a dele. Coloquei as cascas e bagaços na sacola e joguei no lixo. Sobrou uma tangerina.

Eu havia estacionado a minha bicicleta ali perto e pretendia dar a minha pedalada habitual até o Arpoador, onde paro a bike e parto para minha caminhada pela areia, de frente para o sol e para a paisagem mais linda do mundo: o Morro Dois Irmãos ao entardecer. A sacola foi pro lixo, eu estava sem bolsa. Só carregava a pochete daquelas de montanhismo, onde cabe a garrafa de água, um documento, um chapstick e o dinheiro da água de coco da volta. O que fazer com a segunda tangerina, que eu não queria comer e não tinha onde colocar?

Agosto é um belo mês para as tangerinas: mexeriquinhas pequenas, pokans enormes de polpa meio ressecada e casca solta, mil tipos… Minha favorita é a murkot, aquela de casca agarrada na polpa, hiper suculenta, doce e carnuda. Na hora em que mordo um gomo de tangerina, quase acredito na existência de deus. Comprei muitas, minha casa está um showroom de tangerinas. Nesta época do ano, há cascas de tangerina espalhadas para secar, ao sol, nas janelas. Seco as cascas para fazer mil coisas. Uso para aromatizar a água básica do chá, uso ralada no tempero de peixe e frango, uso no purê de abóbora. As folhas, eu seco, guardo e uso muito, muito mesmo, durante todo o ano, em receitas que vou inventando na hora. Bolo de tangerina com casca e tudo é delicioso. Sopa de shiitake com folhas de tangerina. Frango assado no suco de tangerina é demais, casca de tangerina glaçada é o que há, filé de peixe assado com folhas de tangerina é “exquisite’. Isso tudo para explicar o quanto eu amo tangerina e o quanto acho que ela é a vedete da estação.

Mas o que fazer com a tangerina que sobrava? Olhei em volta e pensei: é fácil! Vou oferecer praquela ali, qualquer um vai querer. “Moça, vc quer uma tangerina?” Ela secava o corpo com a toalha, olhou, sorriu: “Não, obrigada”. Ao lado dela, um trabalhador, de macacão, descansava à sombra do quiosque. Quando cheguei perto dele para oferecer a fruta, ele nem me olhou. Foi logo balançando a cabeça em negativa e acenando com o dedo do não. Tangerina nem pensar. O rapaz que trabalhava no quiosque também não quis. A moça que passava nem me deixou explicar, passou direto, me evitando. Me senti a bruxa da Branca de Neve oferecendo uma maçã envenenada aos transeuntes. Por diversão e teimosia, decidi tentar até que alguém aceitasse minha doce e deliciosa tangerina. Nada. Todo mundo com medo, passando direto por mim, me olhando como se eu fosse dar a tangerina e pedir alguma coisa em troca. Eu só queria dar uma tangerina doce deliciosa e perfeita para alguém e ninguém queria. Eu ria. Dois surfistas riram, achando tudo estranho: não, obrigada. Um guardador de carros declinou: acabei de comer um doce. Um senhor que caminhava rapidamente entendeu meu drama, mas também não quis. Dois pescadores não quiseram, mas um deles disse: “obrigado pelo seu bom coração”. Por fim encontrei um homem sentado numa cadeira, ali ao lado do quiosque. Moço, vc quer essa tangerina? “Ô, meu deus, que sorte, que maravilha, não poderia ter aparecido em hora melhor, sou louco por isso!” Pegou a tangerina, levantou e começou a descascar a bela fruta, feliz da vida. Um outro, vendo a cena, disse: “Da próxima vez traga duas, eu também adoro, vou ficar na vontade”…

Moral da história: a sua tangerina pode ser a mais doce, mais perfeita, a mais deliciosa do planeta. Você pode estar oferecendo a sua linda tangerina de graça, com um sorriso nos lábios. Mas nem por isso você vai encontrar alguém que a queira. Isso também acontece com a gente, com nossos sentimentos, com as coisas que temos para oferecer para os outros e para o mundo. Nem sempre somos compreendidas, aceitas, queridas e desejadas. O que não significa que o que temos para dar não é bom. Às vezes, demora para encontrar quem queira nossa tangerina, mas isso não quer dizer que seja melhor a gente tentar oferecer maçãs, quando maçãs não estão no cardápio. Demora, mas quando a gente acha quem realmente aprecie nossa doce tangerina, a gente entende o sentido da vida. A gente entende o porquê da nossa barraca nessa feira moderna…
SAM_0571

 

*post publicado originalmente no primeiro endereço deste blog, não sei exatamente quando. escrevi quando a minha afilhada mais velha, a Ju, terminou um namoro e ficou arrasada pq o menino não queria mais ela. Lembrei do texto agora pq minha afilhada 2, a Mari, também terminou um namoro e tá arrasada. As minhas meninas, não! Se soubessem como são lindas!

turistas

08/07/2015

“Se cada pessoa plantasse uma frutífera na frente de casa, crianças poderiam comer frutas todos os dias, sem precisar comprar. E assim cresceriam saudáveis”, diz o ministro da igreja em que entrei pela primeira vez por curiosidade. Fui entrando, senta aí, ele disse, rabiscando uma fileira de casas e árvores em perspectiva infinita, ponto de fuga no horizonte. Filósofo, teólogo, culto e apaixonado pela lógica. Duas horas de conversa sobre os mistérios do mundo, eu e o ministro da igreja que atravessou meu caminho. “adoro que me perguntem, ninguém nunca me pergunta nada”, diz ele desenhando, num papel, estranhos gráficos para ilustrar respostas.

O ministro me disse que são necessários um bilhão de antepassados para eu ser eu, e por isso, de certa forma, carrego todos eles nas costas. Uns me empurram pra frente, outros me puxam pra trás. Uns inspiram, outros sufocam. Uns sopram divinos dons, outros pedem por um bom cigarrinho e marafo. Acho graça, não tenho religião nenhuma. Sempre tem os que ascendem e os que preferem ficar por aqui mesmo. Quero uma religião sem deus. Deus é a maior invasão de privacidade que há. O olho que tudo vê. Não. Não quero religião nenhuma.

Música já faz as vezes disso tudo na minha vida. No palco, rezo. Lugar comum, dirão. Mas todo mundo repete isso porque é isso mesmo. Cantar de verdade, sem fazer pose, se entregar a uma música, junto com músicos que estão no mesmo transe, pra uma plateia que está na mesma faixa de frequência é uma sessão de descarrego acompanhada de um passe e uma bênção. Até o sangue afina, a linfa flui, o hipotálamo se equilibra e o timo cresce. Equivale a rezar, se iluminar e encontrar deus. Tudo a mesma coisa.

Em Copacabana, isso de plantar frutíferas pra cada casa seria o caos. Já imaginou a Av. Nossa senhora de Copacabana ladeada por mangueiras carregadas? As mangas caindo nos capôs dos carros e dos ônibus, poft, no parabrisa, e abacaxis crescendo nos canteiros, onde cachorros de lacinho e sapato fazem xixi. Ou então bananeiras deitando seus cachos baixos, ao alcance da mão do transeunte. Pegar, descascar, comer. Não suja nem os dedos, se for esperto. “Ah, que lindo seria. Se numa rua de mil casas…” delira ele, apontando pra sua rua infinita no papel, cheia de crianças e casas e árvores,“cada uma tivesse uma frutífera. Uma só! As crianças pobres teriam mil fontes de alimentação e poderiam crescer e estudar. Não comi fruta, por isso fiquei assim, baixinho”, diz ele, do alto de um metro e meio de filosofia e amor à arte e à lógica.  “Veja: Esse pensamento é revolucionário! O êxtase da arte é o que procuramos. Vcs, músicos, encontram”.

Mais cedo, meu analista me fala de Machado de Assis, que preciso reler, entre tantas coisas. Admitimos nossas humanices. O ministro da igreja fala em Jung e assim, no flow, o dia se encarrega de encerrar o tema com um capuccino quente e um vento frio. “A verdade, o bom e o belo: a vida deveria se resumir a isso”, diz o filósofo. “Todo o resto é erro”.

As coisas estão todas bem misturadas e alinhadas e eu acho que a vida só é boa quando é assim. Uma hora ela tira pra dançar, outra ela dá chá de cadeira ou uma bela rasteira. Mas aí ela mesma vem e estende a mão. Se você topar, ela te levanta, e eventualmente te dá uma piscadela. E outra rasteira e outra piscada e outra dança. Não há vencedores, só aspirantes. Gosto de olhar assim pras coisas. Ancestrais, Jung, sopa de legumes, pesadelos da infância e imposição de mãos. Turismo, puro turismo.

2015-05-04 19.21.25

Havia, na Gonçalves Dias, uma pequena loja de ouro baixo, onde vendiam cordões de todas as espessuras, e medalhas de santos, de todas as Nossas Senhoras, de anjos protetores, crucifixos e, claro, imagens de São Jorge em medalhinhas, medalhonas, chaveiros, isqueiros de prata e anéis.

Eu trabalhava no Jornal do Brasil e almoçava por ali. Toda vez que eu passava pela vitrine da loja, eu paquerava um anel de prata simples, com um ônix oval, onde um São Jorge bem singelo pousava delicado, apontando sua lança ao alto e avante. Quando a grana saiu, comprei o anel. Cabia certinho em meu dedo fino, aro 18.

Eu não tirava o anel nem pra dormir. Minha sobrinha tinha lá uns três aninhos, hiper falante e articulada. Ela sempre pedia pra brincar com meus anéis e perguntava: “que isso?”, apontando pro São Jorge do anel. Eu dizia que ele era chamado de santo porque tinha lutado contra um dragão e tinha vencido a luta e por isso ele era tão admirado, porque, como ela bem sabia, derrotar um dragão é uma coisa muito difícil. Argumento totalmente convincente para ela, familiarizada com criaturas fantásticas misturadas nos dias comuns.

Um dia, lavando a mão, percebo horrorizada que o São Jorge não estava mais lá, restando a pedra lisa, lisinha. A silhueta de prata do santo guerreiro tinha sido apenas colada na pedra, e não engastada, como imaginei. Caiu, prendeu em alguma coisa, descolou e eu nem vi. Triste, tristíssima, continuei usando o anel, a pedra lisa, lisinha.

Minha sobrinha, batendo aquele papinho antes de dormir, brincando com os meus anéis, como de costume, se assustou: “Cadê o São Jorge!?” E eu, como ela, sempre muito mais à vontade no mundo da fantasia que no real, respondi, de improviso: “São Jorge soube que tinha um dragão à solta, e falou pro cavalo dele: ‘ah, eu é que não vou ficar preso em anel com esse dragão solto por aí. Vou me mandar daqui!’ E pulou da pedra do anel com seu cavalo branco, caiu no mundo, atrás do dragão, e nunca mais voltou!”

A menina ouviu tudo de olhos sorridentes e arregalados. Provavelmente achando aquilo tudo magicamente plausível. Eu também acho, ainda hoje, quando sinto, na lida das horas, uma força, uma espécie de São Jorge vencendo dragões dentro de mim.

 

Jorge sentou praça na cavalaria e eu estou feliz porque eu tb sou da sua cia

 

alice*

02/10/2012

vou pintando as unhas com cores estranhas
aprendendo a fazer receitas diferentes
dando assim um tipo de banda no tempo
nessa dor insuportável que estala os ossos
e ruge nos ouvidos
me acordando quando quase consegui dormir
e, de repente, juro que foram passos lá fora
desço correndo as escadas
tropeçando na barra da camisola de flanela
cheia de rainhas, bules e chapeleiros malucos
pra ver se foi vc que esqueceu que tinha ido embora
do nosso país das maravilhas.
onde foi mesmo que deixei aquela mulher
que eu era antes de vc sair?

* pra minha amiga que sabe quem é

e se comer fosse sempre vegetais frescos e frutos do mar grelhados e queijos e pão integral e azeite e chocolate? e se beber fosse sempre água e vinhos e  café e chá? e se a alegria fosse sempre encontrar pessoas queridas, com música, onde todos os tipos, de todas as idades, fossem bem vindos e se sentissem bem, sem hora pra acabar ou pra começar, sem firula? e se namorar fosse sempre com um homem maravilhoso, bem humorado e gostoso, cúmplice, carinhoso e parceiro? e se viajar fosse sempre para se perder de vista e colocar outros olhares nos olhos? e se chover fosse só para lavar e matar a sede da terra e se o sol banhasse as águas limpas e as areias brancas, brilhando realmente para todos, em igual intensidade? e se o vento só ventasse para carregar o mal pra lá e o bem pra cá? e se todos os dias dessa vida a gente acordasse de olhos bem abertos para o que tem, e não para o que não tem?

Ilusão de ótica

28/08/2011

Toda vez que você chegava perto de mim

Era um arrebol na minha frente

O vermelho de todos os crepúsculos

De todas as alvoradas

Nada se mantinha de pé no meu campo visual

De olhos obliterados

Eu me atirava

Como quem pula de uma janela, vendada

Como quem se joga de um trampolim

Numa piscina funda e dourada


Toda vez que você chegava perto de mim

Eu me sentia aberta

Como uma orquídea lilás

Como uma planta carnívora

Que espera, doce e molhada

Pela sua presa

Tudo se tornava quente à nossa volta

Derretíamos icebergs distantes

Provocávamos avalanches

As neves de todos os picos, melavam

Aguavam de tanto calor


Toda vez que você chegava perto de mim

Era a música de deus

Que me acordava

Trazendo-me de volta à vida

Preenchendo os meus silêncios com beleza

Os vizinhos acordavam com o nosso som

Acordávamos os dias, como os passarinhos

Chorávamos de rir

Mil faltas, mil excessos

E a nossa sensação de raridade


Por isso, naqueles dias

Depois que você saiu

Jurei que você voltava

Jurei que você voltava

sonho

19/08/2011

 cânhamo egípcio, 500 fios, brancos  lencóis,

noites inquietas, claras de lua, quentes demais

cortinas paradas, varandas abertas

o tecoteco do ventilador

 mosquiteiro de voile

 durmabem, espirais de fumaça

ruas desertas e casas abertas

praias de areia bem branca e azuis

mãos, as tuas, em mim

sonhos, perdidos, os meus,

e sol

 

 

 

 

 

fio da meada

25/04/2011

Minha irmã me ensinou que Flaubert disse: “Tenha cuidado com a tristeza. É um vício.” Depois disso, nunca mais esqueci de driblar os pensamentos que podem acordar tristezas, tirá-las dos esconderijos onde estão, e dar-lhes à luz. A tristeza tem lá seu colorido, seu sabor. É farta e disponível. E vicia. Se a gente puxar o fio da tristeza de dentro da gente, ele apresenta uma a uma,  feito lenços saindo da cartola do mágico, feito bandeirinhas de São João, feito lampadinha de árvore de natal: uma seguidinha da outra.

Tristeza não tem fim. Está sempre lá, cheia de motivos. Tímida e chorosa, num  cantinho, ou doida pra brilhar, dançando em cima do queijo, espaçosa. Uma tristeza convida a outra pra entrar: “fica à vontade, querida, aqui tem espaço para todas nós!” E ela entra,  arma sua barraca e acampa na sala.  Quando uma alegriazinha qualquer bate à porta, elas abrem e dizem: “não tem ninguém em casa”, e blam!

Morro de medo de tristeza, pq quando começa não para mais, e aí ela me invade como o inimigo invade uma cidade, me toma e me ocupa, mesmo os melhores lugares de mim. Sequestrada por ela, refém da tristeza, paralisada, vejo a vida real passando lá longe, imperfeita, mas também cheia das alegrias que pisoteamos, todos os dias, em busca da felicidade.

ebony and ivory

06/04/2011

A minha mão parecia a mais branca das brancas quando nossos dedos se entrelaçavam ou quando ele enfiava o rosto na palma da minha mão, que abria cuidadosamente e beijava, demoradamente e com devoção, olhos fechados, como quem beija o centro de tudo. A pele dele era preta, sem metáforas. No dedo anelar direito, ele tinha uma aliança fina, lisa, e uma larga, desenhada. Prata. A minha tinha sóis e luas, no dedão da mão direita. O braço era magro e rijo, glabro, suave ao toque, pétala de flor. A luz artificial fazia o negro do rosto brilhar em tom de cobre escuro, de cobre no tempo. De que reino distante terá vindo essa turmalina? (Nasci na Rocinha, moro no Estácio)  Se alguém quer matar-me de amor que me mate na Lapa. O nariz de aba larga, olhos amendoados, firmes e pequenos. Lábios cor de açaí, fartos, contornados a mão, irrigados, viçosos, dizendo: beijo. Sabia que a correnteza daquele rio ia envolver o que encontrasse pela frente. Línguas, lábios carnudos, lábios molhados, lábios quentes, dentes. A cabeça a zonzear: socorro, vou mergulhar. “Adoro seus olhos, sua luz de dentro, deixa eu te beijar”, vc pediu, me olhando nos olhos e segurando minha mão. “Me beija, me beija por favor”, vc pediu. E aí vc deu um gole no gengibre e aí a sua boca minha boca sua língua minha língua. Tudo. Seguiram-se explosões subatômicas, fumo, vinho, ópio, flautas de pã, fogueiras para o Gamo-Rei, cantos de sereia. Miscigenação. Sua boca feita pra minha feita pra sua. Tenho medo de deixar vc me tocar mais longe e mais fundo. Posso desfalecer com a pressão exata dos dedos, com os segredos ditos no ouvido e, acima de tudo, com o carinho extremo no trato, afeto tesão quentura e ritmo. “Seu beijo é aurora boreal”, vc sussurra num rap que improvisa pra mim. Por um instante, ocupamos o mesmo lugar no espaço. Nos beijamos de mãos dadas, solenes e castos, olhamos dentro dos olhos, calamos. “A luz da sua retina me ilumina”, você versa. O beijo esquenta, a pulsação muda, o gemido escapa: vc pra mim. A manhã grita, ruidosa, os ônibus cheios guinchando os freios na Lapa. Nós orbitando, distantes dali, as estrelas de primeira grandeza daquela constelação, café sem açúcar, pão na chapa. Brilhávamos, incandescidos pela química das misturas. Aqui agora tudo. Agora que nos tocamos, estamos condenados. Trocamos as alianças. Na secretária eletrônica: “Seu beijo é aurora boreal. Volta, mulher, volta pra mim”.

os pensamentos se empilhavam feito panquecas de lenhadores canadenses, enquanto eu tentava dormir. nada. qdo o despertador acordou, nao acreditei, mas enqto fazia um café, tinha que lavar logo toda a  louça da festa e deixar a casa mazomeno apresentável pra reunião de trabalho que ia acontecer à noite, senão não dava tempo. e tb tinha que colocar roupa na máquina, deixar a toalha de molho – o vinho manchou –  lavar e guardar as panelas, os copos, talheres.

Ai, a divulgação, os releases.  E tb passar uma vassoura, um pano no chão, molhar as plantas, lavar panos de serviço e toalhas de banho, e ainda me preparar pra coletiva de imprensa, meio out of tune and out of time na nova casa. ainda tem aquela salada?  textos pra aprontar e roteiros pra repensar.  preciso retocar as raízes. na minha cabeça só uma música, nada a ver com nada, me ocupando o pensamento. ainda fui correr na praia, só meia horinha, pra manter a fé no sol e no passo. Ok, mas só se demorar 10 min pra todo o resto: arrumar o equipo, banho, vestido, fruta, taxi, trabalho. A pergunta de sempre: por que estou aqui e não ali?

ahhhh, para, moço! preciso passar no banco e pegar o cachê do cara que ainda nao paguei e q passa de madrugada pra receber! e tirar a roupa da máquina, revisar e entregar a matéria, fazer um café antes da longa reuniao cheia de conversas do coração (não esquecer do coração).

Durante o dia, ouço histórias de casais que cumprem seu destino, de amigos tristes e felizes, ouço tb novidades incríveis e  nem consigo ouvir com a atenção merecida, reencontro amigos queridos de vidas passadas, morremos de rir com o broder nicolai: vodca, rodela de limão, pó de café e açucar depois do show. os pensamentos continuam empilhados, não posso esquecer de nada. Lá no fundo, o repertorio do disco solo, meia dúzia de culpas, o repertório do conjunto, dieta, saudade da sobrinha, dureza, vida real, recompensas, tristezinhas, emails bons, família, afagos. no fim de tudo, dou de cara com uma garrafa de bordeaux, na gaveta de verduras, esquecida da festa. ê, vidão!


rainha do mar

30/12/2010

depois de suar com os pés na areia, medito com os pés no mar. a praia é a minha mais silenciosa e ruidosa casa, onde manda a água, mãe da natureza. Faço o ciclo das minhas águas, chorando pra iemanjá me conceder as graças que tanto desejo, chorando pra agradecer, chorando pra descansar. As ondas batem nas minhas pernas ao som do mar e à luz do céu profundo. Os ultimos raios fosforescentes de 2010 douram o mar do Leblon e as infinitas favelas da cidade, qual árvores de natal pra sempre incrustradas nas encostas.

me dou conta de que  tudo é uma bobagem pq o mar está ali, do mesmo jeito, há milênios, e nem te ligo pra essa coisa de datas, de sucesso ou de fracasso. A areia também nao sabe de nada, está lá, areiando desde o fiat lux. Os verdadeiros inocentes do Leblon. Mesmo assim aproveito a oportunidade de zerar o contador e, motivada pelo espírito coletivo de renovação, peço a Iemanjá que seja possível ressignificar o que se esgotou, e que a vida re-exploda em mim, nos múltiplos e sucessivos réveillons de cada dia, que o tal universo de possibilidades seja para todos e que os famintos de todas as fomes tenham do que se alimentar.

Peço que eu mesma saiba ser bastante grata e feliz, que eu perceba o tamanho da minha riqueza, que eu reconheça meu próprio sucesso, que eu me ame, que eu valorize minha existência, que eu me sacie com o que a vida me alimenta e saiba honrar o assento efêmero que recebi nessa carruagem de fogo, a cada momento, num mundo que, para sobreviver, zera a si mesmo, se regenera e reinventa o tempo todo (Why then, oh, why can’t I?). O universo está em  explosão permanente, bombando há anos-luz, explodindo supernovas e cavando buracos negros onde tudo é força, tudo é energia. E nós, grãos infinitesimais, tendendo a poeira cósmica, somos feitos dessa mesma matéria explosiva. Nem por isso deixa de ser bonito a gente achar que é importante.

Feliz ano novo

Com urgência, entrei na primeira ótica que vi, pra comprar lentes de contato. Fui tratada como uma rainha. Pessoas simpáticas, hiper eficientes e à vontade, sem excesso de treinamento. No fim da compra, papo descontraído, o cara que me atendeu dá uma geral nos óculos de sol que estou usando, me dá um brinde e abre os braços para me dar um abraço: “Felicidades pra vc!”, nos abraçamos afetuosamente. A moça também vem me dar um abraço: “Deus te abençoe, linda!”. Tudo me pareceu verdadeiro. Saltitei pra fora da loja, com 10 anos de idade, bombeando amor universal pelas ruas de Ipanema.

Quando a gente tá contente… baratotal. Aquela felicidade hare krishna de sorrir pra tudo, com verdade. Estar contente é o que? Contente vem de contentamento, que o Aurélio descreve como: “sentimento de prazer, alegria.”

Hoje confirmei que o contentamento, pra mim, não tem nada a ver com alcançar as condições que estabeleci como básicas para ser feliz, tipo a grana, o trampo, o amor.  A tal “mitologia da felicidade”: se eu tiver tanta grana, tal trabalho e um amor x, então serei feliz. Mas tem a ver com a decisão de ficar contente. Atualmente estou em treinamento íntimo pra sempre escolher sorrir, e mudar o curso da história daquele momento na base do sorriso.

Peço perdão a todas as correntes que não vou citar, para dar a minha teoria do que é realmente transformador: as lentes e a prática do contentamento. Mudar a minha perspectiva do mundo muda o mundo para mim.  E nao o mundo em si, que é sempre exatamente o mesmo fucking bloody multifacetado wild mundo. E nunca vai poder ser diferente, porque ser mundo é ser isso, é ser tudo.  Tipo gente. Gente é tudo.

*li esse conceito no The cow in the parking lot – A Zen Approach to Overcoming Anger, de Leonard Scheff e Susan Edmiston, que acabei de traduzir pra Ed. Objetiva. Merece a leitura, para além dos domínios da autoajuda.

infância

29/11/2010

essa calçada é  minha. Posso andar de skate, sozinha, mas só se eu jurar que não vou atravessar a rua. Tá, eu juro. A minha mãe fica no bar da esquina tomando cerveja com os amigos. Ela adora que eu fique muito tempo andando de skate e eu adoro que ela fique muito tempo tomando cerveja com os amigos. Quando já tá ficando tarde, ela fala: “vamos ficar mais um pouquinho?” êba

Eu posso andar sozinha de skate sem atravessar a rua, mas só nesse lado do quarteirão. É bom ir quase até a outra esquina, porque a rua é meio descidinha, e aí eu pego impulso, e quando chego na esquina do bar onde minha mãe tá tomando cerveja com os amigos, eu pulo do skate e ela berra: “cuidado, menina!” “Tá” eu respondo pegando o skate correndo e subindo a rua com ele debaixo do braço. É um pouco longe e às vezes dá medo de ir sozinha, mas nao faz mal, porque é irado quando eu pego impulso lá na esquina e venho zunindo até o bar com um frio na barriga.

Na frente do edifício azul tem uma parte da calçada que dá um salto, tipo um degrau redondo, e eu pego impulso e pulo antes do skate cair no buraco e já saio na frente da portaria de grade verde. Maneiro é quando eu to sozinha, porque senão eu  toda hora tenho que emprestar o skate e não to a fim.

to torcendo pra minha mae tomar mais uma cerveja, aí ela demora mais ainda, compra um sorvete, uma coca, uma  bala e eu vou ficando. Às vezes a gente fica até de noite, é irado. E aí quando eu ando de skate de noite é mais maneiro, porque a rua é só minha mesmo e eu saio voando pela pista, meu tênis de lantejoula rosa brilha e eu voando, voando, voando, voando, voando. Irado.

a gira

18/11/2010

no sonho, girávamos bem lentamente numa ampla cadeira giratória, lenta como a terra, as translações e os movimentos de rotação. Talvez fosse um balanço de vime pra dois, pendente do teto,  ou uma namoradeira antiga, girando em câmera lenta, assento floridinho, rosa chá e azul acinzentado.

Talvez fosse uma cama redonda, travesseiros de plumas das barbas azuis de gansos alvos, como alvas eram as paredes caiadas daquele quarto, branco como os lençóis de 500 fios de algodão egípcio. Varandas nos dois lados, portas abertas e janelas azuis, ventando cortinados e mosquiteiros. Entre o céu e nós, de quina, os cacos vermelhos de telha do telhado,  o escoadouro das chuvas mirando no ralo. A encosta é grega: pedra e sal, branco e azul, agua e luz.

Era eu e vc, às gargalhadas, rolando de rir enquanto nosso quarto girava, nossa cama rodava e o reggae rolava trazendo a justiça para o mundo. Coisa fina esse sonho que eu tive. Eu e você por sobre um mar azul piscina, a areia branca invadindo a piscina do  mar azul, filtrando a cor, filtrando o sol, o sol ardendo, aquela felicidade da pele. fibra ótica.

oversharing

26/10/2010

tenho certeza de que privacidade é um conceito que caducou com a internet. Quem viu, viu, quem não viu… nunca mais. Perdemos para sempre a noção da privacidade, conceito e valor. Definitivamente, o que era bom em segredo é muito melhor em público. Mas por que será que tenho a impressão de que essa comunicação é um empilhamento de monólogos sem feedback, onde os interlocutores podem ou não interlocutar, que dá na mesma, o que interessa é ter algo a dizer. A gente vai continuar postando detalhes de todos nós, para alguém ou ninguém ler, simplesmente porque dá a sensação de movimento, pq agora a vida tem que ser evidentemente legal e todo mundo precisa saber o quanto.

Perdi completamente a noção da vida sem essa exposição, pq tenho um pc desde os primórdios dos pcs, sempre estive em todas, nunca tive dificuldade com a linguagem de internet e fiz aquele percurso natural de descoberta, acompanhando como usuária, a evoluçao da própria tecnologia. Vi de perto o surgimento das redes de relacionamento, desde o tempo do icq, do irc, das salas temáticas de bate-papo, até o momento atual. Tenho tudo: orkut, FB, twitter, site, myspace, youtube e este blog.  Nunca desligo o computador e sinceramente nao acho que isso vá mudar, pq a cada dia fica mais natural ver o mundo via web. E sem a internet, atualmente, uma cantora não existe.

A internet faz pelas pessoas o que a TV fazia antigamente, entretém, só que com a programação à escolha, individual, disponível fulltime com o adicional da interatividade. Pensou em solidão? Pensou certo.

PS: Minha sobrinha, de 9 anos, outro dia resmungou: “Poxa, nunca recebi uma carta! Só da Caixa Econômica Federal!” Mandei a carta, recheada de recortes, cartões, fotos. Souvenir de tia, pra ela ver como era a vida no tempo da privacidade.

turista intencional

12/09/2010

estar turista é um estado transitório, desconfortável, porém inevitável. Por mais que vc não queira, no dia em que vc pisa num país estranho, numa cidade que desconhece, num lugar cujas regras não domina, perdoe a má palavra, vc é turista!

turista tem um ar parvo, bobo-alegre, ávido, bem disposto, pronto pra tudo, animadão. Gente que está ali para aproveitar de tudo, ao máximo. Acorda cedo e dorme tarde.  Topa todas, bate palma nas músicas típicas, se veste mal, tênis velho, moletom, para ficar o dia todo confortável. Bebe demais na praia, passa mal, arrisca passos que nunca dançou, experimenta comidas e bebidas diferentes, se deixa queimar demais ao sol, compra cds de artistas locais que nunca vai ouvir, faz tererê no cabelo, arrisca tatuagens de henna, compra imãs de geladeira, camisetas, canecas de mau gosto… Lembranças daquele momento da vida em que ele não estava oficialmente vivendo a própria vida. Férias tem um ar carnavalesco, de libertação para alguns. E para outros, tem um peso pesado, do dinheiro economizado, arduamente, para pagar aqueles dias de alforria, antes de voltar à escravidão que esta vida contemporânea de liberdades nos impôs.

Estou turista. Atônita com a quantidade de comida que vai pro lixo na farra do boi das churrascarias, com o tantão de doces incomíveis do café colonial, das 220 espécies de comida alemã que servem  na mesma refeição, com a sequência de fondues, de sopas, tudo servido na mesa, da mesa pro lixo. O excesso, o abuso, o muito, o transbordamento de todos os desejos de férias de tudo. All you can eat, tudo o que você aguentar, dizem os americanos, cheios de bacons e gelatinas azuis no café da manhã. De férias, a galera encara até gelatina azul.

Pessoas que jamais se encontrariam passam um dia inteiro juntas, dentro de uma van, forçando um contato amistoso, afinado pela situação comum a todos: ser turista. Cearenses confraternizam com gaúchos que confraternizam com  mineiros de São Paulo. Todos falam super bem das suas cidades, exibindo seus dotes, como se fossem filhas prontas a casar. Todos invejam os cariocas, menos os baianos, que têm a maior auto-estima do país. Todos se amam dentro de uma van de excursão de dia inteiro. Alguns trocam emails e telefones, tiram fotos abraçados e fazem juras de amizade que jamais se concretizarão. No almoço onde o vinho é liberado, passam do ponto, em nome das férias.  Não importa. Naquele momento, coração aberto, todos estão prontos e livres.

E se vivêssemos, dia após dia, com o desprendimento parvo das férias, com o coração aberto ao novo, alma leve e disponibilidade para experimentar o que não conhecemos, curiosos, sem julgamentos, com a maior boa vontade dos mundos?

Quero olhar o mundo com olhos de turista. Turista da minha própria vida, do meu cotidiano, sem nunca perder o olhar primeiro. Feliz, embriagada de sol demais e cheia de sede de liberdade, aventura e confraternização.

Devia ser sempre assim: nós, turistas. A vida, férias.

Quando era bem novinha, na vida passada em que fui bailarina, eu dei muita aula de balé, pra baby class e adultos. Dei aula até de dança afro, que estranhamente psicodancei pra substituir a Dil Costa, minha professora interrompida por uma intempérie da vida.

Alongamento, alongamento em dupla, clássico, jazz e sapateado, minha especialidade!  Eu dançava super bem, tinha inteligência corporal, fluidez. Mas a vida toda no eterno engorda-emagrece-engorda, apesar de toda inútil neurolinguística, percebi que não tinha physique du rôle para o mercado da dança, que acabei abandonando, embora ainda ame dançar. E também, reparei que eu era uma má professora, burocrática, sem saco.

Como morei na Inglaterra, também dei aulas de inglês. Odiava com toda paixão.  Acho que os alunos também, porque eles, assim como os clientes da funerária, nunca voltaram. Depois que estudei música, fiz uma super formação para professores, na Pró-Arte, excelente para quem tem… talento para dar aula. Dei aula de musicalização em colégio, em pré-escola e até em creche. Toquei violão para bebês, no berçário. Metade chorava de medo, o resto, dormia. Precisada de ganhar a vida e pagar as contas, eu acordava aos prantos, na hora de ir pra creche, como se fosse enfrentar leões famintos. “Mas são apenas bebês!!!” – dizia meu ex, ao me ver acordar em pânico total, no dia de dar aula pras crianças que engatinhavam em volta de mim, no piso fofinho da creche. Tinha verdadeiro terror das crianças maiores, embora eu me entenda bem com crianças, em geral. Eu fantasiava que a diretora da escola ia entrar na sala, acompanhada de guardas, e gritar: “Prendam essa impostora!”

Resolvi dar aulas particulares. Nada como adultos escolhedores e interessados. Qual o quê! Meus alunos pagavam adiantado e sumiam! Eu era escalada pra bater papo, pra ouvir confidências, pra sair pra beber, até pra festa de seres andróginos eu fui convidada. Mas aula que é bom, nada! 

Em verdade, em verdade vos digo: odeio dar aula e sou péssima professora. Menor saco, menor entusiasmo. Recentemente, quando eu disse que não dou aula (de canto), ouvi: “Ah, é, sua egoísta? Quer o que sabe só pra si, né?” Fiquei bolada. Na tentativa de ressignificar conceitos, arrisquei novamente. Quem sabe, num novo momento? Água! A aluna sumiu depois da segunda aula. E eu encerrei esse capítulo da minha história, definitivamente. E é por isso que a alternativa nº1 de quem trabalha com música não é uma alternativa pra mim. Aí eu fui cozinhar. Mas isso já é outra história…