pileque

10/10/2016

Sentada na cadeira do dentista, procuro por um pensamento que me tire dali, um tapete mágico que isole o barulho do motor, o desconforto da anestesia, a aflição da invasão. Não encontro. Lembro da última vez em que fiquei apaixonada e de como eu adorava ter oportunidades, como essa, pra desligar do mundo e ficar só assistindo àquele filme. Primeiro beijo, desejos multiplicados e compartilhados, compacto das melhores cenas, renovando o encantamento. Como uma semideusa, as humanidades baratas não me atingiam. Debaixo dos pés eu trazia nuvens, e quem traz nuvens nos pés não pisa no chão dos mortais. Vai longe a última paixão. Não guardo em mim nenhum rastro dessa dulcissima ilusão à tôa. A paixão é, de longe, o melhor pileque que já tomei.

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empoderada

01/04/2016

vi um video, com bilhões de curtidas e compartilhamentos, estimulando mulheres a aprenderem a se divertir consigo mesmas. Sugerindo que uma mulher deve experimentar sentar sozinha em um restaurante e pedir um prato maneiro, ou ir ao cinema sozinha e chorar num filme emocionante, ou ver arte num museu, ou simplesmente passear num parque para aprender a apreciar a própria companhia. Como se elas nunca tivessem feito isso antes. Para meu espanto, lendo os comentários, vi que muitas realmente nunca se divertiram ou tiveram prazer sozinhas. Me parece que a mensagem subliminar é: tente! vc tb existe sem um homem à tiracolo pra te qualificar como mulher.

As novas mulheres falam tanto em empoderamento. Mas precisam começar pelo começo. Mulher é mulher do momento em que nasce até morrer. Mulher não é sinônimo de beleza, de juventude, de gostosura ou charme. A mulher não desaparece quando amadurece, nem precisa ficar se afirmando, aprendendo como amar depois dos 40, como se renovar depois dos 50, como começar uma nova atividade depois dos 60. A vida é uma linha continua que só para quando acaba. No meio pode ter família, filhos, namoros, casamentos, viagens, trabalhos diferentes, mudanças de casa, de direção, de crença, de preferência sexual, de hobby, de profissões ou atividades. esse papo é coisa de cartilha feminina americana dos anos 50, que rezava que mulher tem que ter um homem só na vida, mesmo que o homem tenha mil mulheres, viver para a família, se dedicar a uma única atividade e depois, quando as leis trabalhistas definirem, parar e começar a se perguntar como foi perder tanto tempo precioso, correndo pra ver o que ainda é possível fazer enquanto a morte não vem. A vida da gente acontece em camadas, em dimensões variadas, não tem monoplano nem pra quem gostaria que tivesse.

As mulheres, enquanto vivas estiverem, podem amar, mudar, recomeçar, renovar, sem se explicar, sem precisarem se sentir diferentonas porque estão vivendo a vida! Esse papo de que os 50 são os novos 40 só dizem respeito à aparência, fazendo, mais uma vez, o jogo do patriarcado. Ufa, em vez de perder o marido para duas de 20, aos 40, agora ganhamos 10 anos. Nada disso! Não vou admitir ser tratada como uma veterana, como coroa, como tia secundária, como velhinha, só porque não tenho mais 40 anos. eu sou mulher. e vou ser mulher até morrer. sem papo de idiotizar a “melhor idade” (expressão que todo velho detesta, claro), sem precisar saltar de paraquedas e falar a gíria da moda pra parecer jovem, sem fazer plástica e sem ter que ser a coroa excêntrica que se veste como uma árvore de natal, de cabelos brancos, pra dizer que assumiu a idade e não tá nem aí. vai ser do jeito que eu quiser. eu que decido. fim.

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English Lavender

08/03/2016

vc era alto. e eu gostava de andar pelas ruas de Laranjeiras pendurada em vc, na ponta dos pés, escalando seu braço, até quase alcançar seu pescoço, onde morava aquele perfume, que um dia, bem depois da felicidade, procurei na prateleira da drogaria. era tanta saudade que entrei na farmácia, junkie em privação, peguei o frasco de colônia e cheirei. uma cafungada certeira que bateu no fundo. depois botei de volta o vidro fechadinho e fui embora com o os pulsos encharcados de perfume, e fui cheirando e chorando pela rua. roubei o cheiro da lavanda, mas seu cheiro, aquela nota de fundo que era só sua, não estava lá. eu tinha orgulho de exibir pro mundo que vc era meu, que éramos tão estupidamente felizes, e que nem adiantava comparar, porque nenhum humano jamais saberia o que era aquilo que a gente tinha. nosso amor, nossa cumplidade. Era English Lavender, o cheiro. 

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sétimo dia

19/02/2016

o filho, que nunca foi de sorrir muito, agora sorri amarelo para todos que chegam e oferecem os braços abertos para o acolhimento. a filha, que sempre sorri, chora toda vez que alguém chega perto. a viuva mantém um sorriso de monalisa, o olhar um pouco parado, enquanto os parentes chegam trazendo um bolo ou um docinho ou um biscoito ou algo pra comer no lanche. a atmosfera é de uma festa estranha, onde as pessoas queriam estar todas chorando, mas se alternam entre contar histórias sobre o morto e a rir muito alto, talvez pra espantar a dor, talvez pra que todos lembrem que a vida continua apesar da morte. não é ruim, é uma forma de todos saberem que sim, vai continuar tudo igual, mesmo quando for a nossa vez, nenhum sol vai deixar de brilhar. vamos nos misturar à paisagem e tudo, tudo vai continuar perfeitamente como é. aproveitemos, pois, enquanto o sol ainda está brilhando para nós, todos os dias, retumbantemente lindo. um brinde à vida!
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insulto ao comum

04/08/2015

desde muito nova, quando comecei a me deparar com as dificuldades da carreira (e o que sabia eu sobre dificuldades?), eu já achava a coisa mais feia do mundo ser músico ressentido, reclamão, gênio incompreendido. sempre achei que quem escolhe não pode reclamar do que escolheu.

tem muito músico que confunde arte com milagre e se acha melhor que os outros porque tem o dom da música. sempre fiz questão de deixar claro que não acho isso, que acho que todos temos um dom e que o mundo precisa de todos. o que seria do mundo sem pontes, sem dentistas, sem pintores de parede, sem cozinheiros? a diversidade colore o mundo, tem gosto pra tudo.

o outro lado desse engano comum vem justamente do olhar do leigo que acha o músico um deus afortunado, um ser especial a quem foi dado o direito de viver “se divertindo”, de “não trabalhar”, como se trabalho fosse, necessariamente, uma obrigação abominável, destinada somente aos reles plebeus.

a batalha na música é muito diferente do romantismo e da poesia que os leigos vêem, embora inclua romantismo e poesia. mas também inclui abandono, desespero, falta de perspectiva, falta de estímulo, solidão, falta de grana e medo. para cada estrela pop que anda de carrão e ganha milhões, existem centenas de músicos como eu, mortais, que não ganham dinheiro, nem fama, nem reconhecimento público, nunca ou quase nunca.

esperar que o mundo tenha um atenção especial para dar aos artistas me parece um engano. eu acho que a arte tem que pertencer à vida, ao cotidiano, à formação do ser humano, assim como a matemática e a geografia de cada dia. a arte deveria ter esse mesmo privilégio, mas não tem. ninguém ensina música na escola como uma possibilidade de profissão. é sempre um hobby, uma diversão. é assim, nesse viés, que começam as distorções que culminam na crença comum de que todos os músicos são vagabundos e maconheiros e que música não é trabalho. porque ela diverte quem escuta e quem faz.

talvez, nesse padrão capitalista infernal, onde as relações de trabalho servem para tornar o patrão feliz e rico e todos os outros, escravos, escolher e ter prazer no trabalho seja um insulto ao comum. mas não é possível ignorar toda a cadeia produtiva envolvida na música que o mundo inteiro consome o tempo todo. milhares de rádios, de playlists, de canais de música, de CDs, DVDs, shows, festas, bares. tem música até no elevador. e por trás disso tem gente. muita gente.

tá tudo errado nesta sociedade, isso é óbvio. quem nasceu pronto pra se adaptar ao moedor de gente que é esse modelo de relação de trabalho e consumo capitalistas? jogo a toalha, será que é porque sou artista?

tenho quase 30 anos de carreira, cinco discos lançados, e canto nos melhores lugares, com as melhores pessoas. 90% das vezes, trabalho de graça ou quase. se isso não está errado, me corrija. ou será que vou passar o resto da vida pagando pelo pecado de fazer aquilo que nasci pra fazer, que me dá prazer, sim, que me faz feliz, sim e que faz muita gente feliz, sim?

hoje, aos quase 30 anos de carreira estou, enfim, reclamando. me sinto incompreendida, abandonada, estou ressentida e com muita raiva. hoje, pela primeira vez, um post vai ao ar sem imagem. hoje não quero beleza nenhuma.

Era um belo dia de sol no bairro carioca do Leblon, que fica na beira da praia mais calma da cidade, menos badalada, mais vazia. Fui encontrar um amigo. Fazia sol de verão em pleno inverno, temperatura alta, mar perfeito. Levei duas tangerinas numa sacolinha, uma para cada um de nós. Conversamos, mergulhamos, o mar subiu molhando nossas coisas, a canga ficou cheia de areia. Peguei na sacolinha, lembrei da tangerina, peguei uma pra mim: um estouro. Meu amigo não quis a dele. Coloquei as cascas e bagaços na sacola e joguei no lixo. Sobrou uma tangerina.

Eu havia estacionado a minha bicicleta ali perto e pretendia dar a minha pedalada habitual até o Arpoador, onde paro a bike e parto para minha caminhada pela areia, de frente para o sol e para a paisagem mais linda do mundo: o Morro Dois Irmãos ao entardecer. A sacola foi pro lixo, eu estava sem bolsa. Só carregava a pochete daquelas de montanhismo, onde cabe a garrafa de água, um documento, um chapstick e o dinheiro da água de coco da volta. O que fazer com a segunda tangerina, que eu não queria comer e não tinha onde colocar?

Agosto é um belo mês para as tangerinas: mexeriquinhas pequenas, pokans enormes de polpa meio ressecada e casca solta, mil tipos… Minha favorita é a murkot, aquela de casca agarrada na polpa, hiper suculenta, doce e carnuda. Na hora em que mordo um gomo de tangerina, quase acredito na existência de deus. Comprei muitas, minha casa está um showroom de tangerinas. Nesta época do ano, há cascas de tangerina espalhadas para secar, ao sol, nas janelas. Seco as cascas para fazer mil coisas. Uso para aromatizar a água básica do chá, uso ralada no tempero de peixe e frango, uso no purê de abóbora. As folhas, eu seco, guardo e uso muito, muito mesmo, durante todo o ano, em receitas que vou inventando na hora. Bolo de tangerina com casca e tudo é delicioso. Sopa de shiitake com folhas de tangerina. Frango assado no suco de tangerina é demais, casca de tangerina glaçada é o que há, filé de peixe assado com folhas de tangerina é “exquisite’. Isso tudo para explicar o quanto eu amo tangerina e o quanto acho que ela é a vedete da estação.

Mas o que fazer com a tangerina que sobrava? Olhei em volta e pensei: é fácil! Vou oferecer praquela ali, qualquer um vai querer. “Moça, vc quer uma tangerina?” Ela secava o corpo com a toalha, olhou, sorriu: “Não, obrigada”. Ao lado dela, um trabalhador, de macacão, descansava à sombra do quiosque. Quando cheguei perto dele para oferecer a fruta, ele nem me olhou. Foi logo balançando a cabeça em negativa e acenando com o dedo do não. Tangerina nem pensar. O rapaz que trabalhava no quiosque também não quis. A moça que passava nem me deixou explicar, passou direto, me evitando. Me senti a bruxa da Branca de Neve oferecendo uma maçã envenenada aos transeuntes. Por diversão e teimosia, decidi tentar até que alguém aceitasse minha doce e deliciosa tangerina. Nada. Todo mundo com medo, passando direto por mim, me olhando como se eu fosse dar a tangerina e pedir alguma coisa em troca. Eu só queria dar uma tangerina doce deliciosa e perfeita para alguém e ninguém queria. Eu ria. Dois surfistas riram, achando tudo estranho: não, obrigada. Um guardador de carros declinou: acabei de comer um doce. Um senhor que caminhava rapidamente entendeu meu drama, mas também não quis. Dois pescadores não quiseram, mas um deles disse: “obrigado pelo seu bom coração”. Por fim encontrei um homem sentado numa cadeira, ali ao lado do quiosque. Moço, vc quer essa tangerina? “Ô, meu deus, que sorte, que maravilha, não poderia ter aparecido em hora melhor, sou louco por isso!” Pegou a tangerina, levantou e começou a descascar a bela fruta, feliz da vida. Um outro, vendo a cena, disse: “Da próxima vez traga duas, eu também adoro, vou ficar na vontade”…

Moral da história: a sua tangerina pode ser a mais doce, mais perfeita, a mais deliciosa do planeta. Você pode estar oferecendo a sua linda tangerina de graça, com um sorriso nos lábios. Mas nem por isso você vai encontrar alguém que a queira. Isso também acontece com a gente, com nossos sentimentos, com as coisas que temos para oferecer para os outros e para o mundo. Nem sempre somos compreendidas, aceitas, queridas e desejadas. O que não significa que o que temos para dar não é bom. Às vezes, demora para encontrar quem queira nossa tangerina, mas isso não quer dizer que seja melhor a gente tentar oferecer maçãs, quando maçãs não estão no cardápio. Demora, mas quando a gente acha quem realmente aprecie nossa doce tangerina, a gente entende o sentido da vida. A gente entende o porquê da nossa barraca nessa feira moderna…
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*post publicado originalmente no primeiro endereço deste blog, não sei exatamente quando. escrevi quando a minha afilhada mais velha, a Ju, terminou um namoro e ficou arrasada pq o menino não queria mais ela. Lembrei do texto agora pq minha afilhada 2, a Mari, também terminou um namoro e tá arrasada. As minhas meninas, não! Se soubessem como são lindas!

eu amo camisa branca. sempre amei. cintadinha, bem decotada, pra usar de jeans e saltão. ou soltinha pra fora da calça, mais discreta, pra trabalhar ou tirar aquela onda BC BG, de moça de “família bem” que almoça durante a semana, com amigas, no  Leblon. adoro também no palco. brancas, bem brancas. sempre fui boa dona de casa, das que compram anil, alvejante e sabão especial pra deixar o branco mega branco, sem aquela cara off-white, de branco gasto, que lava na máquina e perde aquela alvura virgem, pra nunca mais.

um dia comentei com a minha mãe: camisa branca , mermo, deve ter a Antônia, a filha da Carmen Mayrink Veiga (baluarte do velho high society carioca), que deve ter uma mucama pra lavar as camisas à mão, pra ficar segurando enquanto quaram ao sol, pra enxaguar delicadamente nas lágrimas de virgens louras e secar à sombra, na brisa filtrada das montanhas da Gávea. as nossas, continuei, nunca ficam aquele super mega branco.

no dia seguinte, chego em casa e encontro, em cima da minha cama, uma linda caixa dourada com um laçarote. Dentro da caixa, lá está ela, reluzente e imaculada, uma linda camisa branca, branquíssima, alva, alvíssima, corte perfeito!  e um bilhete:

“Não é só a Antônia que tem camisa branca perfeita, tá? com amor, Mum”

E de lá pra cá, as camisas brancas nunca mais foram as mesmas. pra mim, elas sempre sussurram, no meu ouvido: “com amor, Mum”

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dia dos namorados

12/06/2015

Em que país distante andará,

dentre tantos homens brancos pretos amarelos e vermelhos

aquele um que, sob sol e chuva, traz na bagagem a tampa

que fecha a panela vazia que pesa na minha mochila?

Em que barcos cruza oceanos bravios

carregando perto do peito, em devoção,

o breve que envolve meu nome

bordado em pétala de rosa

e, incansável, me busca?

Onde o dono da única alma

que encontrando a minha alma

num átimo,

se reconhecerá como se espelhado fosse?

Ele aposentará as botas gastas de caminho

ele andará descalço, ao meu lado

e eu descansarei meus olhos secos da procura

quando seu olhar molhar o meu

figura e fundo

Quem será o andarilho obstinado

que anda pelo mundo de chinelo velho

atrás deste pé, cansado

de tanto escorregar na pista?

Quem é o homem

que tem deitado em camas e mais camas

sem se queimar nas brasas do amor verdadeiro

e, como eu, tem beijado um mundo de bocas

sem encontrar, em nenhuma delas, o sabor

de laranja pela metade descobrindo a contraparte?

E se desencontrarmos na hora do encontro?

e se eu pegar o ônibus errado?

e se ele se atrasar na hora certa?

e se eu me distrair com a paisagem?

E se ele já tiver passado por mim

e eu, cega, de tanto procurar

tenha deixado ele passar?

Ou terei eu sido a escolhida

para andar por esta terra

para vir a esta vida

sem nunca ser amada, nem amar?

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Havia, na Gonçalves Dias, uma pequena loja de ouro baixo, onde vendiam cordões de todas as espessuras, e medalhas de santos, de todas as Nossas Senhoras, de anjos protetores, crucifixos e, claro, imagens de São Jorge em medalhinhas, medalhonas, chaveiros, isqueiros de prata e anéis.

Eu trabalhava no Jornal do Brasil e almoçava por ali. Toda vez que eu passava pela vitrine da loja, eu paquerava um anel de prata simples, com um ônix oval, onde um São Jorge bem singelo pousava delicado, apontando sua lança ao alto e avante. Quando a grana saiu, comprei o anel. Cabia certinho em meu dedo fino, aro 18.

Eu não tirava o anel nem pra dormir. Minha sobrinha tinha lá uns três aninhos, hiper falante e articulada. Ela sempre pedia pra brincar com meus anéis e perguntava: “que isso?”, apontando pro São Jorge do anel. Eu dizia que ele era chamado de santo porque tinha lutado contra um dragão e tinha vencido a luta e por isso ele era tão admirado, porque, como ela bem sabia, derrotar um dragão é uma coisa muito difícil. Argumento totalmente convincente para ela, familiarizada com criaturas fantásticas misturadas nos dias comuns.

Um dia, lavando a mão, percebo horrorizada que o São Jorge não estava mais lá, restando a pedra lisa, lisinha. A silhueta de prata do santo guerreiro tinha sido apenas colada na pedra, e não engastada, como imaginei. Caiu, prendeu em alguma coisa, descolou e eu nem vi. Triste, tristíssima, continuei usando o anel, a pedra lisa, lisinha.

Minha sobrinha, batendo aquele papinho antes de dormir, brincando com os meus anéis, como de costume, se assustou: “Cadê o São Jorge!?” E eu, como ela, sempre muito mais à vontade no mundo da fantasia que no real, respondi, de improviso: “São Jorge soube que tinha um dragão à solta, e falou pro cavalo dele: ‘ah, eu é que não vou ficar preso em anel com esse dragão solto por aí. Vou me mandar daqui!’ E pulou da pedra do anel com seu cavalo branco, caiu no mundo, atrás do dragão, e nunca mais voltou!”

A menina ouviu tudo de olhos sorridentes e arregalados. Provavelmente achando aquilo tudo magicamente plausível. Eu também acho, ainda hoje, quando sinto, na lida das horas, uma força, uma espécie de São Jorge vencendo dragões dentro de mim.

 

Jorge sentou praça na cavalaria e eu estou feliz porque eu tb sou da sua cia

 

não-verbal

21/04/2015

canto mil músicas pra ele, sobre ele, sobre mim, sobre o amor, sobre a paixão, em inglês. as palavras escorrem de mim, na direção dele, liquefeitas e cremosas.

ele não entende inglês. então, de vez em quando, canto olhando nos olhos dele. ele sorri. sempre sorri e me olha lá dentro. no final de tudo, me beija.

acho que ele entendeu.

 

 

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juízo final

16/12/2014

Eu poderia brigar com os deuses do amor, por me botarem o doce na boca e tirarem, tão rápido. Depois de anos adormecida, acordei, subitamente, com a quentura de um sol escancarado dentro do meu peito. Cheia de encantos mil caminhei uns dias, pelo mundo, em contato direto com a massa de que é feito o melhor tipo de vida: amor. Mas, protegida pelos estranhos desígnios dos descupidos, vi o sol se apagar sem aviso, deixando, no epicentro do peito, o buraco negro que sorve a esperança, a raridade e a alegria dos que amam.

Do meio do meu deserto avistei, na rua, um casal comum de meia idade sorrindo de cumplicidade pura, uma demonstração secreta, porém explícita, de amor e parceria. E sorri. O sol há de brilhar mais uma vez.

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afluentes

09/12/2014

a tua correnteza flui na direção do meu mar. seu braço de mar, a foz do teu rio, eu. encontro das águas salgadas e doces, e as nuvens boiando no céu. a tarde, a noite, o tempo, tudo parou, esperando por nós. o fumo levanta a onda que nos carrega pro doce leito de estrelas. correntes de cá e de lá se misturam. somos dois afluentes, flow, fluxo. vc, meu bote, meu barco, meu rio. eu, seu leme, seu remo, seu mar .

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casa na areia branca de praia deserta

a 10 passos do mar transparente e calmo e tépido

violão

ganja

rede de casal

ar condicionado

água de coco gelada

vinho branco

peixe

frutas

salada

sorvete

ele

e

eu

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com a perspectiva da primeira cirurgia da minha vida, tenho pesadelos de morte e acordo com o coração na boca. embora eu tenha apenas uma condição mecânica adversa que pode (e deve) ser corrigida, sinto como se estivesse me oferecendo em sacrifício. morro de medo e vertigem e quase todo dia tenho um episódio de pânico e desisto: foda-se, vou sentir dor pra sempre, já acostumei, mesmo. a dor é minha, ninguém tasca. Mas, depois, quando a dor me tira o rebolado, o sono, o suingue e a simpatia, eu cedo. E rezo por um milagre enquanto, a contragosto, me preparo.

distraída nas minhas mil dores, esbarro num rapaz sorridente, que cruza, pé ante pé, o meu caminho, cada dia um passo.  moribunda  que estou, descreio que eu possa ser o alvo de tamanho sorriso, graça e desejo. mas, surpresa, aceito esse convite pra mais uma contradança. e logo percebo um sol sentado em meu sofá, irradiando luz, sorrisos, música e carinho.

estamos envoltos nessa conexão surpreendente –  mudamos o eixo da terra em uma noite -,  e um vórtice de energia passa por dentro da minha casa a cada vez que a gente se toca e sorri. a paz reina, soberana. eu sorrio.

experimento a polaridade absoluta deste momento, ora no claro, ora no escuro, ora no yin, ora no yang. passo do frio ao calor, do macio ao áspero, do medo ao conforto.

tenho apenas uma certeza: estou viva. bem viva.

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minha rainha

01/06/2014

eu tenho um amigo. ele me ensinou tantas coisas tão importantes pra mim. fomos juntos à faculdade. descobrimos que, mesmo com diferenças etárias e geográficas radicais, nascemos falando o mesmo idioma.

com muito orgulho vi aquele garoto da calça verde virar gente, dono de uma inteligência rara, que o levou a todos os lugares do mundo onde ele esteve estudando, trabalhando, sendo genial, divertido, engraçado, competente, maravilhoso. a carreira deslanchou e ele desabrochou pra vida, aprendeu de tudo, falou línguas. mas tinha dificuldade em encontrar aquele lugar interior onde a gente tira o sapato e se sente acolhido. o mundo pode ser um lugar difícil.

esse meu amigo é gay. faz diferença? faz. e vou explicar porque. ele não foi meu primeiro amigo gay, mas foi o primeiro que me contou que apanhou na rua por ser gay, que mostrou que o mundo podia ser hostil, mas que ele não ia se dar por vencido. ele foi abrindo caminho no grito, na competência: olhem pra mim, eu sou assim! um dia, ele descobriu que ele era o dono do lugar que quisesse, que podia plantar sua bandeira em qq lugar e simplesmente ser.  então ele floresceu, se apoderou de si mesmo, ocupando sua plena potência. e me ensinou a me olhar, a me ser, a exigir respeito como mulher, hetero, cantora, gordinha e carioca. eu.

com ele aprendi a ter intimidade que eu nunca tinha praticado com ninguém. aprendi a falar o indizível e a ouvir o inaudível, humanos, simplesmente humanos sobre a terra. por ele, com ele, trabalhei um monte de preconceitos, um monte de olhares viciados, aprendi montes de coisas e me transformei numa pessoa menos careta.

lindo, gato, bem sucedido profissionalmente, altos e baixos no amor, diversão em alta, produtividade bombando. ele agora resolveu se divertir um pouco mais e virar drag queen. falamos de maquiagem, de perucas, de truques femininos. eu e meu amigo. e lá vou eu, majestade, aprender a domar outros preconceitos, a fazer o dolorido exercício de aceitar o desconhecido sem julgar, lá vou eu detonar outros vícios do olhar e ver outras novidades nunca dantes navegadas. e assim, o mundo se esclarece, pela via do amor. tive sorte de te encontrar, my queen, minha rainha louca!

olha vem comigo aonde eu for, seja minha amada e meu amor, vem segui comigo meu caminho e viver a vida só de amor

 

em junho deste ano, 2014, faço 50 anos.

este blog tem esse nome pq, qdo eu tinha 20, conheci a obra do compositor Erik Satie e me apaixonei. ele tem uma peça chamada Avant-dernières pensées, que quer dizer Penúltimos pensamentos. fiquei encantada com a irreverência dele e com uma frase que, naquele tempo, já me parecia completamente pertinente: “Disseram-me: Verás quando tiveres 50 anos. Tenho 50 anos. Não vi nada”. Aos 20 anos eu já achava isso totalmente plausível e hoje, na beira dos 50, percebo que eu antecipara uma sensação de permanente perplexidade que, no ano passado, me fez tatuar um ponto de exclamação no cangote. quero deixar bem claro que estou perplexa e, embora não tenha visto nada, vi muita coisa e permaneço aquela mesma garota que tinha sede de viver tudo. acima de tudo, estou perplexa por fazer 50 anos.

ano retrasado, aos 48 anos, eu só pensava em desligar os aparelhos, desesperada por problemas de dinheiro, saúde, trabalho e amor. tudo ruiu. ano passado, como resultado de todo o investimento da vida, with a little help from my friends, aos 49, renasci. estou vivinha da silva.

àqueles que pensam que tem uma hora pra desistir do sonho e ir fazer outra coisa, conto meu segredinho: depois de intempéries, contrariando todas as expectativas e indicativos, vou realizar, em 2014, aos 50 anos, com 26 anos de carreira, o meu sonho impossível.

qdo eu tinha 29 anos, uma mulher muito foda me falou: “aquilo a que vc se dedicar, daí virá o seu sucesso”. nesse meio tempo entendi que o sucesso muda de lugar o tempo todo. e a gente na estrada, caminhando, caminhando. e isso é bom. *

o movimento do desejo é constante, avante, ao alto, em espirais ascendentes tendendo ao infinito.

*aos que acham que apenas o pensamento positivo basta, aquele abraço.

piso fora da nuvem com a lembrança de uma linha que une o pescoço à orelha. uma dobra. e um cheiro bom. e o toque. tudo branco.

o mundo lá fora é plano. as pessoas se falam mas não se escutam. o mundo lá fora é bege. luzes artificiais, bons dias e boas noites. na nuvem só existe verdade. eu falo, vc escuta. vc fala, eu calo. qdo vc me toca, paro, qdo te toco, vc sente. nos ouvimos, nos tocamos, calamos. dormimos, muito. como dormimos bem. e os beijos. e os beijos.

vc me dá uma toalha branquíssima e enorme, tapete de Aladim, sobrevoando Ipanema. meu cabelo está com o cheiro de um xampu que nunca usei. seu desodorante tem cheiro de baunilha,  e eu, pq estou navegando, branca, em sua nuvem, uso também.

vc me oferece uma escova de dentes, fechadinha num pacote: “usa, é sua”. meu corpo está um pouco trêmulo, porque you touched me. sorrio pro fauno que me acompanha. sorrio pra mim mesma no espelho do banheiro, pra minha cigana vermelha, agora envolta na maior toalha branca que há. sorrio, estou aqui agora no melhor dos mundos, portanto, flutuo.

pelo telefone, vc pede pão na chapa com queijinho, café, água gasosa, que amo. vc bota a mesa. requeijão e geleia. segura meu rosto entre suas mãos, me beija na boca, me trata bem. me trata como mulher. piso, pé ante pé, quase vendada,  no atalho de delícias que vc me promete qdo diz: “as janelas são quase à prova de som”. entendo. desfruto.

depois falamos coisas muito sérias sobre a vida, ficamos em silêncio, teorizamos, de mãos dadas. e cochilamos, um sobre o outro. penumbra de quase vigília dentro dos olhos: não posso perder nenhum detalhe.

quando piso fora da  nuvem, entro no taxi sorrindo, peço pra parar no posto, compro sorvete de chocolate belga. vou pra casa, deito, fecho os olhos, o corpo todo agudo. I cloud. Bom. Bem bom.

i could have danced all night i could have danced all night and still have begged for more

minha fé

10/09/2013

Escrevo esta oração

Para aceitar aquilo que posso mudar

Reiniciar, desapegar

Escrevo esta oração para  mudar de fase

Para abrir os olhos para olhar a luz

Para seguir em frente

Para aceitar o amor no coração

Para aceitar presentes

Para ser grata

Escrevo esta oração

Para saudar a vida

O que nos é mais caro

O amor que nos une

O céu que nos protege

Os mistérios do mundo

A liberdade

De pedir

De dar

De agradecer

De mudar

love songs

27/07/2013

amigos, café, chocolate, vinho do porto, fumo. a música é variada. coisas que a gente nunca mais cantou, e cujas letras emergem dos subterrâneos da memória, trazendo junto avalanches de lembranças e cheiros e cores de outras vidas. e os amores. penso nas paixões que vivi, no fracasso da minha vida amorosa, nas péssimas escolhas que fiz, nas incontáveis frustrações. volta a velha e permanente sensação de que o meu pacote de serviços não inclui amar e ser amada. embora esteja acostumada, tenho me sentido só. quem, nunca? deve ser o inverno. ou a idade. ou o vento. passa. canto canções de amor e, por dentro, me sinto uma impostora. as canções de amor quase perderam o sentido pra mim, é como se eu cantasse sobre um unicórnio, sobre uma fada, um dragão, ou atlântida. ausência ilustre, lâmpada queimada, terreno baldio, corda quebrada de violão. amor: meu continente perdido.

tudo de bom

16/05/2013

Eu quero que você, que nunca foi a Paris, ganhe uma viagem de presente, e tenha dias de filme. Que você conclua seu projeto. Que você sinta amor, paixão e tesão e seja correspondido. Espero que aquele seu plano secreto se concretize. Que tudo funcione da melhor forma possível pra você. Tomara que você seja o melhor filho para os seus pais, e o melhor pai para seus filhos. Que os vizinhos lhe queiram bem, que a vida lhe trate com elegância e que você tenha um bom amigo, ou mais que um. E que vc seja bem surpreendido alguma vez. Torço pra que o trabalho que vc faz seja apreciado à altura da sua dedicação e do seu merecimento. Torço pra que seu companheiro realmente te acompanhe, te respeite e te ame. Desejo que todos os dias da sua vida sejam de paz. E que a alegria seja a sua visita mais frequente. Se a tristeza pensar em chegar, que seja leve. Sombra, água fresca, música, dias ensolarados, chuva prazenteira, longas noites de amor e riso. Te desejo vida com uma pitada de sal, um pouco de açúcar, e uma pimentinha. Boa comida, bebida e juízo, só o quanto baste. Que a temperatura seja amena e a maré, mansa. Que as tempestades lhe sejam suaves, mas se forem fortes, que sejam breves. Desejo tudo de bom pra você.

dia de luz festa de sol e o barquinho a navegar no macio azul do mar. tudo é verão, o amor se faz, num barquinho coração que desliza na canção