domínio público

07/11/2019

Sábado à noite. Festa. Pessoas vão chegando, se falando, pegando suas bebidas, encontrando suas cias e seus lugares pra ficar. A noite está começando, é fim de semana. A moça encosta ao meu lado, em frente ao balcão das bebidas e suspira: “Aff, vou ter que beber esse carboidrato”. Pega uma cerveja e sai, me deixando atônita e quase culpada por não estar reduzindo o ato de tomar uma cerveja, com amigos, numa festa, a “beber carboidrato”.

Pouco tempo depois escuto outra moça comentando sobre a empadinha: “ai, que delícia, amanhã vou ter que ficar o dobro de tempo na esteira”, ao que a mulher ao lado morre de rir e concorda, balançando a cabeça: “ah, a gente tem que correr atrás, é isso aí, amiga”. A moça do carboidrato líquido, encosta ao lado de alguém e justifica mais uma vez a sua transgressão, ouço ao longe: “eu nem ia beber hoje, esse carboidrato todo é foda, pão líquido, né?” Seu interlocutor faz cara de “foda-se” e manda pra dentro o resto da long neck, de uma vez, dando meia-volta e deixando a moça falando sozinha.

Há momentos de dieta, de doença, de detox, e de tratamentos na vida. Eu sei. Eu já fiz milhares disso tudo. Já fiquei sem beber e sem comer nada por milhares de dias da minha vida. Já optei por não sair de casa, qdo a restrição me pareceu impossível de lidar e já fui pra festa beber água sem comer nada. Já odiei ter saído e voltei correndo pra casa, no humor mais suíno da terra, e já fiquei de boas, fumando um e bebendo água, sem me sentir mal por não estar compartilhando dos comes e bebes. Cada um sabe de si, do seu momento, da sua dieta. Não estou falando disso.

Estou falando de um comportamento especialmente comum às mulheres, que estão sempre se desculpando, publicamente, por não estarem no peso que deveriam, por estarem comendo em vez de estarem passando fome pra chegar no tal “peso ideal”. Elas têm tanta certeza de que a aparência é a coisa que mais importa, de domínio público, que entendem que o mundo está esperando uma satisfação sobre a sua conduta alimentar. E se desculpam, e explicam. E aceitam um pedaço de pizza e confessam a culpa. E acham que esse assunto interessa às pessoas que estão na mesa do bar com elas, na festa com elas, tentando ter um minuto de descompressão da vida bandida.

O corpo feminino é historicamente tratado como posse alheia e as mulheres são as primeiras a permitirem que assim seja. Estão sempre comentando a aparência umas das outras, como se isso fosse a coisa mais importante. Toda gorda escuta: “vc emagreceu?”, mesmo sem ter emagrecido, numa mistura de sugestão e de esperança da outra, que quer testemunhar o emagrecimento obrigatório. Toda gorda deve querer emagrecer. Não tem escolha. Se não ficar magra não casa, se não emagrecer não pode entrar na igreja de noiva, se não perder peso perde o marido, se engordar é safada, gulosa, sapatão, suvaco cabeludo, mulher macho. “estamos preocupados com a sua saúde”, diz a hipócrita bebendo coca zero e comendo salsicha.

Os movimentos anti-gordofobia, as tentativas de normalizar o plus size, emplacam a passos de cágado, mesmo nesta sociedade globalmente acima do peso. As mulheres gordas estão tentando existir fora do holofote do ridículo, querem pleitear o direito à beleza. Mas a sociedade continua dizendo que “ela tem um rosto lindo, que pena” e fingindo que aceita suas barrigas expostas pelas blusinhas cropped. Pegue os últimos 20 trabalhos de um fotógrafo de casamento e veja se tem alguma noiva gorda. Depois me conta.

Enquanto as próprias mulheres se desculparem por não estarem com o corpo ideal, enquanto julgarem outras mulheres pela aparência, enquanto comentarem a aparência de outras mulheres como avaliação, como uma banca de exame, nada disso vai mudar. Como o machismo, que precisa mudar na estrutura, entre os homens, a descoisificação da mulher precisa começar pelo olhar de mulher pra mulher. Até lá, seremos uma sociedade de mulheres acima do peso se sentindo sempre em dívida, erradas, pecadoras, safadas e doentes.

E se sua amiga estiver gorda e bebendo e comendo na festa, apenas brinde a vida com ela, resista à tentação de ser educativa e julgadora. Vamos combinar que caloria se conta em casa e cada uma conta as suas.

minha rainha

01/06/2014

eu tenho um amigo. ele me ensinou tantas coisas tão importantes pra mim. fomos juntos à faculdade. descobrimos que, mesmo com diferenças etárias e geográficas radicais, nascemos falando o mesmo idioma.

com muito orgulho vi aquele garoto da calça verde virar gente, dono de uma inteligência rara, que o levou a todos os lugares do mundo onde ele esteve estudando, trabalhando, sendo genial, divertido, engraçado, competente, maravilhoso. a carreira deslanchou e ele desabrochou pra vida, aprendeu de tudo, falou línguas. mas tinha dificuldade em encontrar aquele lugar interior onde a gente tira o sapato e se sente acolhido. o mundo pode ser um lugar difícil.

esse meu amigo é gay. faz diferença? faz. e vou explicar porque. ele não foi meu primeiro amigo gay, mas foi o primeiro que me contou que apanhou na rua por ser gay, que mostrou que o mundo podia ser hostil, mas que ele não ia se dar por vencido. ele foi abrindo caminho no grito, na competência: olhem pra mim, eu sou assim! um dia, ele descobriu que ele era o dono do lugar que quisesse, que podia plantar sua bandeira em qq lugar e simplesmente ser.  então ele floresceu, se apoderou de si mesmo, ocupando sua plena potência. e me ensinou a me olhar, a me ser, a exigir respeito como mulher, hetero, cantora, gordinha e carioca. eu.

com ele aprendi a ter intimidade que eu nunca tinha praticado com ninguém. aprendi a falar o indizível e a ouvir o inaudível, humanos, simplesmente humanos sobre a terra. por ele, com ele, trabalhei um monte de preconceitos, um monte de olhares viciados, aprendi montes de coisas e me transformei numa pessoa menos careta.

lindo, gato, bem sucedido profissionalmente, altos e baixos no amor, diversão em alta, produtividade bombando. ele agora resolveu se divertir um pouco mais e virar drag queen. falamos de maquiagem, de perucas, de truques femininos. eu e meu amigo. e lá vou eu, majestade, aprender a domar outros preconceitos, a fazer o dolorido exercício de aceitar o desconhecido sem julgar, lá vou eu detonar outros vícios do olhar e ver outras novidades nunca dantes navegadas. e assim, o mundo se esclarece, pela via do amor. tive sorte de te encontrar, my queen, minha rainha louca!

olha vem comigo aonde eu for, seja minha amada e meu amor, vem segui comigo meu caminho e viver a vida só de amor

 

mea culpa

22/03/2013

somos todos iguais. Tá, uns mais iguais que outros. uns completamente diferentes. passamos a vida procurando nossos pares e deles nos aproximamos e ficamos agrupados assim, por afinidades. algumas reais, algumas presumidas, algumas apenas desejadas. nos aproximamos do que nos identifica, ou do que desejaríamos que nos identificasse. mas a vida não permite esses territórios fundamentalistas. no dia a dia, a gente esbarra com gente – de bem – totalmente diferente da gente. amigo de amigo, amigo de parente, parente de parente, parente de amigo. não tem como evitar e nem deve. é saudável saber respeitar outros mundos. o exercício diário de tolerância com a diferença, mesmo aquela que nos agride os valores, que nos incomoda, que nos indigna, é um dever de casa da vida, que recebemos todo dia, se quisermos, pra aprender alguma coisa. me envergonho de pensamentos preconceituosos, de pré-julgamentos, de achismos, de definições apriorísticas, de classificações e antecipações indébitas. me envergonho da minha mente tacanha disfarçada de aberta e disponível.  todos os dias, quero tirar de mim essa mentalidade classe média cega e burra e alçar voos do tamanho do mundo real, onde tudo pode, onde tudo existe, onde tantas verdades co-habitam.

essa é a minha oração. é por isso que, todos os dia, bato no peito, peço perdão e confesso: mea culpa, mea maxima culpa. prometo melhorar. amém.

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