Na minha vida sempre houve uma amendoeira. Foi com elas que aprendi a gira dos ciclos naturais de todas as coisas vivas, foi com elas que aprendi sobre o tempo. Na frente do apartamento onde cresci eram tantas, e tão grandes, que, se a gente esticasse o braço, dava pra tocar os galhos que quase entravam pela janela. Elas filtravam a luz e perfumavam a casa em dias de chuva. Os passarinhos cantavam o dia todo, os morcegos morcegavam pela madrugada, jogando amêndoas ruidosas nos capôs dos carros, e a gente acompanhava ninhos sendo construídos, ocupados e desocupados, ano após ano. Quando mudei de casa, as amendoeiras passaram a servir de anteparo para que eu pudesse tomar banho de porta aberta, misturada no verde mais carioca depois do mar, da mata atlântica e do gramado do Maracanã. Dizem que elas vieram lá das Índias. Gostaram tanto daqui que cresceram e se multiplicaram, e foram chamadas de amendoeiras-da-praia.

Aprendi as estações do ano assim: a amendoeira e eu, espelhadas. Ela por fora, eu por dentro. Ela vermelha, amarela e laranja, eu desapegando e desacelerando em meu outono pessoal. Ela pelada e eu calada, hibernando enquanto a primavera não vinha. Aí, ela explodia em brotos e as folhas tenras começavam a desenrolar, e lá vinham as vespas beber o mel da floração, e o cheiro enjoativo do pólen entrava em casa e a esperança brotava no meu coração, ensaiando a plenitude frondosa do verão. Eu, imperdoavelmente jovem, acreditava na promessa das cigarras que cantavam na minha janela, convocando para a felicidade obrigatória e urgente da estação-definição desta cidade: no verão, todos os sonhos se realizarão, os amores virão, as festas serão incríveis, o carnaval será o melhor de todos, a felicidade encantada florescerá no pôr do sol vermelho. Com tudo isso, nada mais importa além de um mergulho no espelho dourado, um mate gelado com limão, uma partida de frescobol.

O Rio cutuca a juventude perene que se esconde em algum canto de nós, como aquele broto de folha que espera sua hora de eclodir. O Rio quer a gente forever young, arrastando chinelos, com o biquini debaixo da roupa, pro caso de dar tempo de dar aquele mergulho rapidinho. Todos os dias, o Rio escancara a sua beleza indecente perguntando: “E você? Vai ficar aí parado, enquanto eu estou aqui, resplandecente, translumbrante sob o ouro do sol?” E a gente ouve e quer obedecer, com eternas saudades das longas férias escolares de verão, das cigarras cantando, dolentes, nas amendoeiras, do corpo moído de sol e de sal.

O Rio deste dezembro de 2017 arde em chamas de diferentes fogos, calores, revoltas, medos, agitos, encantos e fervos mil. O Rio de Janeiro está pegando fogo, sob o sol abrasador do verão implacável que se anuncia, e pelo sangue quente correndo nas veias de quem quer viver esta cidade mais e melhor. São tempos para reerguer a monumental maravilha caída, para devolver o Rio para quem nasceu ou escolheu viver aqui. Espelho de seu povo, a beleza do Rio mora na praia, nas encostas cobertas de florestas, nas águas fartas, no morro e no subúrbio. Belezas diversas, pra todos os gostos. Mas que ninguém se engane: a beleza desta cidade depende, mesmo, é da mistura.

Que cantem as cigarras! É verão na Cidade Maravilhosa!

 Esse sol, porque tinha de tanto brilhar / Anunciar no meu peito o amanhã pra depois sumir / E deixar tão mais negro meu céu, minha noite

nós, os exilados

25/09/2015

tempos pesados. apartheid social no Rio, a verdadeira face do carioca aparecendo, o mito do brasileiro gente boa, cabeça aberta, por terra.  somos caretas, ignorantes, tementes a autoridades religiosas e ao bicho papão. o fundamentalismo desponta impedernido e bravo, prometendo mais alguns anos de escuridão pela frente. mal colocamos a cara pra fora, depois de anos de chumbo, e lá vêm eles, os neonazistas, os milicianos “do bem”, com seus assassinatos de meninos, sua chacina de índios, sua defesa da falida família tradicional, sua exploração predatória da natureza, seus lucros exorbitantes e seus celulares que valem mais que mil vidas de pretos pobres.

hoje as trevas deitaram sobre o país, com o Estatuto da família. se eu fosse homossexual, pensei, pedia exílio agora, e sumia de um país que não me enxerga, não me quer, não me respeita. não ficava pra perder essa guerra e ia existir em outro terreiro. raiva.

da mesma forma, me sinto rejeitada, mal amada e desprezada pelo meu país. infeliz e cansada com as portas que nunca se abriram pra mim, desprofissionalizada em dose dupla, envergonhada. ando visitando meus porões escuros, pisando no lodo do fundo do meu poço, refletindo e chorando muito por mim, pelo Rio, pelo Brasil. ando tomada dessa tristeza universal, querendo dar as costas pra terra que amo e que não me quer, sem ter como.  

Ai lembrei da Síria, e dos refugiados que preferem arriscar a vida a continuar na sua pátria amada. doeu aqui.

2barras 029

insulto ao comum

04/08/2015

desde muito nova, quando comecei a me deparar com as dificuldades da carreira (e o que sabia eu sobre dificuldades?), eu já achava a coisa mais feia do mundo ser músico ressentido, reclamão, gênio incompreendido. sempre achei que quem escolhe não pode reclamar do que escolheu.

tem muito músico que confunde arte com milagre e se acha melhor que os outros porque tem o dom da música. sempre fiz questão de deixar claro que não acho isso, que acho que todos temos um dom e que o mundo precisa de todos. o que seria do mundo sem pontes, sem dentistas, sem pintores de parede, sem cozinheiros? a diversidade colore o mundo, tem gosto pra tudo.

o outro lado desse engano comum vem justamente do olhar do leigo que acha o músico um deus afortunado, um ser especial a quem foi dado o direito de viver “se divertindo”, de “não trabalhar”, como se trabalho fosse, necessariamente, uma obrigação abominável, destinada somente aos reles plebeus.

a batalha na música é muito diferente do romantismo e da poesia que os leigos vêem, embora inclua romantismo e poesia. mas também inclui abandono, desespero, falta de perspectiva, falta de estímulo, solidão, falta de grana e medo. para cada estrela pop que anda de carrão e ganha milhões, existem centenas de músicos como eu, mortais, que não ganham dinheiro, nem fama, nem reconhecimento público, nunca ou quase nunca.

esperar que o mundo tenha um atenção especial para dar aos artistas me parece um engano. eu acho que a arte tem que pertencer à vida, ao cotidiano, à formação do ser humano, assim como a matemática e a geografia de cada dia. a arte deveria ter esse mesmo privilégio, mas não tem. ninguém ensina música na escola como uma possibilidade de profissão. é sempre um hobby, uma diversão. é assim, nesse viés, que começam as distorções que culminam na crença comum de que todos os músicos são vagabundos e maconheiros e que música não é trabalho. porque ela diverte quem escuta e quem faz.

talvez, nesse padrão capitalista infernal, onde as relações de trabalho servem para tornar o patrão feliz e rico e todos os outros, escravos, escolher e ter prazer no trabalho seja um insulto ao comum. mas não é possível ignorar toda a cadeia produtiva envolvida na música que o mundo inteiro consome o tempo todo. milhares de rádios, de playlists, de canais de música, de CDs, DVDs, shows, festas, bares. tem música até no elevador. e por trás disso tem gente. muita gente.

tá tudo errado nesta sociedade, isso é óbvio. quem nasceu pronto pra se adaptar ao moedor de gente que é esse modelo de relação de trabalho e consumo capitalistas? jogo a toalha, será que é porque sou artista?

tenho quase 30 anos de carreira, cinco discos lançados, e canto nos melhores lugares, com as melhores pessoas. 90% das vezes, trabalho de graça ou quase. se isso não está errado, me corrija. ou será que vou passar o resto da vida pagando pelo pecado de fazer aquilo que nasci pra fazer, que me dá prazer, sim, que me faz feliz, sim e que faz muita gente feliz, sim?

hoje, aos quase 30 anos de carreira estou, enfim, reclamando. me sinto incompreendida, abandonada, estou ressentida e com muita raiva. hoje, pela primeira vez, um post vai ao ar sem imagem. hoje não quero beleza nenhuma.

mil palavras

26/08/2014

paquetá

volto de viagem desanimadérrima com o Brasil, em especial com o Rio de Janeiro, cidade da qual posso falar, pq é aqui que vivo. cansada de tanta caretice disfarçada, percebo que finalmente colhemos o que plantamos durante toda a nossa história recente: um povo sem educação, sem cultura, com valores tacanhos e preconceitos mil, ainda cheios daquela velha opinião formada sobre tudo. A ignorância, no sentido da palavra, é a maior escuridão, a maior cegueira. temperado por essa sensação de superioridade tropical, o narcisismo carioca virou uma bomba cujos efeitos estamos experimentando. estamos ainda no tempo da depuração, vivendo nossa idade média, nos digladiando e levantando a cabeça do opositor como troféu. torço pra, se voltar brasileira, que seja daqui a mil anos luz, qdo os dinossauros que habitam a mentalidade cristã-tropical, sejam apenas fósseis nas sombras do tempo.

Viajando sozinha, flanando pelas ruas de Londres, debaixo de chuva e sentindo muito frio,  me permiti um breve descanso de um ano intenso de batalhas e conquistas. acabei fazendo uma viagem onde o silêncio de estar sozinha se transformou num misto de reflexão e contemplação desse admirável mundo velho. Esse que o maravilhoso, feliz e colorido Brasil jamais experimentou ou experimentará.

Demorei a entender o que era que me deixava tão bem ali. lá, no meio da rua do cidadão comum, as aparências já foram, há muito, substituídas por outros valores e vc pode ser azul de bolinha branca, que ninguém vai te julgar por isso. vc entra na livraria mega cult e a mulher te atende com um aplique de cabelo tipo Maggie Simpson, com uma maquiagem anos 50, séria e feliz, sendo como quer ser. No restaurante comum, o garçom usa alargador de orelha, tattoo na mão, dreadlocks lilás, amarradas no alto da cabeça como um espalhafatoso espanador e pronto. e vc acostuma e para de olhar pra isso com espanto. assim como vc vê uma coroa com um garotão num pub, bem à vontade, e uma gorda namorando um magro e uma velhinha bebendo sozinha e um velhinho vestido como um personagem de cinema e casais multi-étnicos e multi-etários, multi-sexuais e suas crianças furtacor. vejam bem: pra mim, que ainda estou no mundo das aparências, essa foi a lente pela qual identifiquei a liberdade.

me pego levemente envergonhada pelo Rio, cidade onde a aparência é tudo, malhar é tudo, ser gostosa é tudo. a espécie ainda não evoluiu pra perceber as outras qualidades e faculdades humanas. aqui vc não precisa ser, mas precisa parecer ser.

em Londres, cansada e desprovida de td censura, vestindo a capa da invisibilidade, experimento momentos da grandeza humana, sua história, sua transcendência e suas conquistas. choro no museu, que abriga a sabedoria de toda a humanidade e é de graça e está lotado. choro com o primeiro portrait de um homem negro, ex-escravo, que ganhou sua liberdade na Inglaterra. choro com o concerto de graça, na linda igreja cheia de jovens. choro pq na minha terra, onde a alegria é linda imperatriz, ainda estamos achando o espelho a melhor paisagem, estamos nadando no aquário, tolos, como se conhecêssemos o mar.

Corro atrás do tempo Vim de não sei onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio o vento Na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade

coragem

25/11/2012

com os sentidos aguçados por uma tarde no estúdio, gravando, entro num ônibus, no Jardim Botânico, e vou indo pra casa. tô sem dinheiro, numa prontidão sem fim, sem hora, sem compromisso. missão mais que cumprida. se eu pedir mais ainda da vida, acho que ela se zanga.

fecho os olhos. a medida boa da tensão. entra um moreno no ônibus, me olha. olho de volta. libido acesa: viva.

fecho os olhos, pensando em como tenho a sorte de estar onde estou e de ser quem eu sou, e me enjoo, fortemente, da minha forma de pensar. sempre tudo arredondado – como se fosse possível dar forma aos pensamentos -, e vou classificando, criticamente, minha forma de ver a vida: doce, macia, côncava, intra, yin. receptiva, feminina, toda potência e majestade. enjoada, sorrio de mim. quanta ilusão há nas imagens dos momentos, nesses instantâneos de felicidade. aproveito pra relaxar, pq sei que isso não dura: daqui a pouco estarei outra, mudando como mudam os ventos, as florações, as marés e essas coisas da natureza. na próxima volta do parafuso estarei dura, chata, puta, azeda, irônica, convexa, masculina, yang.

sigo pensando nas formas e chego no meu bairro, lindo, caótico, no primeiro dia dos próximos 4 anos de obras. reclamar? nem devo. o Rio de Janeiro está se redesenhando. penso na história das cidades, nos movimentos das massas e me repreendo: porra! de novo pensando redondo!?

duas amigas vêm à minha casa beber e falar.falamos todas ao mesmo tempo, como só as mulheres conseguem, escutamos tudo e morremos de rir. a noite nunca tem fim.

me falta agudizar as coisas, deixar as arestas cutucarem, estourar a luz. me falta coragem. logo eu, Andrea, cujo  significado, dizem, é exatamente esse: coragem.

amanheceu.

Aqui no Rio, qdo entra o verão, reinam os sinônimos estabelecidos de alegria e diversão: beber até cair, ficar loucaça, beijar mil bocas, jogar altinha, tomar champagne na praia, felicidade urgente para todos. O verão é um grande carnaval que dura 3 meses.  Se vc não está nessa, desafina. Amo praia e posso beber e produzir falsa alegria e transe a qq hora, mas estar dentro de uma multidão suarenta,  cantando Vou festejar, realmente nao me diverte mais. Me sinto inadequada, passada, fora de esquadro.

Estou sem alegria e vou além: to cansada dessa necessidade de alto astral, de festejar, de comemorar, de ser feliz o tempo todo, de ser “pra cima”, de produzir um clima de felicidade permanente, de “encantar a vida”. Isso virou uma imposição dos esotéricos e neurolinguistas, que ameaçam a gente com os nossos próprios pensamentos e sentimentos. De hoje em diante vc só pode pensar coisas lindas e boas e prósperas e fofas e saudáveis e positivas! A vida real, cheia de defeito, feiura, dificuldade, celulite e dureza, essa vc desprograma dentro de vc e tudo muda! A celulite some e a grana aparece. ãhã. A gente vira culpada por tudo, é pior do que os crentes, o papa e seus rebanhos. E nem tento mais desabafar com amigos, pq começa a campanha pra “levantar o astral”: vc é maravilhosa, sacode a poeira, dá a volta por cima!

Vamos pular, vamos dançar, vai rolar a festa, vamos todos participar desse grande comercial de telefonia celular, dançando nas ruas, o astral lá em cima, cercados de gente bonita em clima de paquera! ‘Cause tonight is gonna be a good night. Não estou jovem, não estou bela, estou cheia de problemas e não espero nada de um sábado à noite ou de um carnaval, perdi a chave da diversão. Não me empolgo, não me interesso e nem me divirto com quase nada ou ninguém. Desencantei. Chega de maya, chega de ilusão, chega de esperar. Godot is not coming. Godot nem existe. Fuck Godot.

PS. ihhh, mó baixo astral esse texto

neste verão quero uma fonte de água fresca, uma fábrica de iogurte frozen, uma plantação de verduras bem crocantes, um pomar com frutas madurinhas e muita sombra, um lugar lindo pra cantar todas as noites e praia todo dia. À tarde, literatura, para nao amolecer demais. ah, e um namorado, que eu tb sou filha de deus, ué.

diluvianas I

07/04/2010

Na locadora ao lado de casa, num momento de brevíssima estiagem:

“E aí? Quando é que tenho que devolver os filmes?”

“Quinta. Mas só se o mundo não acabar.”

retrato

26/01/2010

Na fotografia estou sorrindo um sorriso que nem me cabe na boca, os olhos acesos, ao lado dele. Ele passa o braço em volta do meu ombro, espaçoso e confiante, com os olhos mareados de tanta fumaça e noite. O sorriso é de plenitude e cerveja.

Em cima da mesa, erguemos uma estranha catedral de bolachas de chope. Em volta de nós, a Lapa e nossos amigos incríveis. Malandras e malandros no salto alto, colares de sementes, guias de todas as cores e todos os orixás. Figas de guiné e ouro no pescoço. Os instrumentos estão apoiados nas mesas e cadeiras. Nos divertimos na pupila do olho do vulcão onde tudo é puro fervo e adrenalina e altas gargalhadas.

Dentro de mim a fogueira arde, o fogo lambe, estalando as achas no meu epicentro. Estou em plena combustão, fulgurante e viva como uma brasa.  Unhas vermelhas, cabelos de cobre, pele dourada. Eleita e pertencente. Depois, amanhecemos em todos os pontos da cidade, Aterro, Diabo, Mirante do Leblon.

Já vejo o pessoal recolhendo as mesas, colocando as cadeiras de pernas pro ar, amontoadas.  A água, cheirando a Creolina, molha os pés do pessoal da saideira, lavando o chão, empurrando os restos da noite pros bueiros das ruas, onde os primeiros trabalhadores já estão indo trabalhar e onde os postes já se apagam. O sol varre, da rua, os boêmios que nunca querem ir pra casa dormir. Ligamos o ar bem gelado e nos enfiamos debaixo de um edredon branco e fofo, o blackout vedando as frestas das janelas. E a felicidade lá.