A vida anda falando de morte. A todo momento a morte e seus parentes batem na minha porta, me acordam de madrugada, tiram o sossego das pessoas que amo e me colocam aquela velha pergunta na boca: fico saudável pra morrer tarde ou chuto o balde pra acabar logo com isso?

Eu não sou uma otimista. Nunca fui. Quando eu era mais nova eu tinha muita raiva de ter que me virar pra viver, pq eu nunca tinha pedido pra nascer e, qdo dei por mim, tinha mil boletos pra pagar e zero interesse em cumprir o script da vida. Ainda não tenho, preciso confessar, mas tenho sorte e pessoas que amo e me amam. Não tenho um deus pra me consolar, tenho afilhadas e sobrinha, mas não tenho filhos, não deixo descendência. Não tenho moral que me faça achar que a vida é uma dádiva. A vida se perpetua, banal como planta que nasce na pedra, sem chance, sem solo, sem luz. Eu vivo, e o demônio insano do Bolsonaro e sua corja miliciana dos infernos vivem, não há qualidade moral na vida, não há virtude.

A arte é um lenitivo, mas não cura. Pq dentro de mim, num dia de destruição como o de hoje, em que a fumaça das queimadas do “dia do fogo” dos ruralistas entrou por dentro de mim e a bala do governador assassino atingiu o meu peito, minhas forças são todas pra chorar a onça pintada carbonizada na beira da estrada, os índios chacinados, os jovens pretos assassinados a granel, a constituição violentada, a justiça mais injusta e um país em ruínas, pautado pela exploração da ignorância e pelas falcatruas.

Na história eu acredito. E é a minha mais secreta vingança pensar que, se sobrar Brasil, em algum momento do futuro, essa gente vai ser reconhecida pelo que é: exterminadores violentos, psicopatas, desumanos, carniceiros com problemas sexuais e fome de poder. Posso não estar mais aqui pra ver, mas carrego a esperança comigo. Nada dura pra sempre, até Hitler caiu. Assim como Auschwitz está lá, pra todo mundo ver o que fizeram no passado, o rastro de destruição dessa gente vai contar o que elas fizeram e o juízo final, não o remoto, mas o dos homens, o da história, há de nos vingar e fazer justiça.

Sepultemos os mortos. Mas cuidemos dos vivos.

mundo invertido

25/07/2016

descobriram a cura não-cirúrgica pra articulações defeituosas e o fim da dor crônica. Inventaram o fim da menopausa e da devastação que ela provoca.

Hoje recebi um email me chamando pra um projeto maneiro, no Brasil, com cachê digno.

Encontrei uma boa parceria de trabalho que me apóia, investe no meu trabalho, me promove, marca shows pra mim, pensa em projetos, faz a produção e a divulgação.

Fui convidada pra fazer uns shows na Europa, com passagem e estadia e até cachê.

Os festivais internacionais pra onde mandei material responderam minhas mensagens e fui aprovada pra participar de uns.

Consegui entrar no edital pra gravar meu DVD e tenho trabalho no ano que vem, e meus parceiros vão ganhar pra trabalhar dignamente.

Este ano, vou gravar meus projetos e vou poder pagar um profissional para resolver pra mim o que não consigo resolver sozinha.

Ganho o suficiente para me manter e investir na minha carreira e na minha vida e pra fazer planos.

Tenho direito a férias.

Tenho direito a sonhos.

pink and blue

nós, os exilados

25/09/2015

tempos pesados. apartheid social no Rio, a verdadeira face do carioca aparecendo, o mito do brasileiro gente boa, cabeça aberta, por terra.  somos caretas, ignorantes, tementes a autoridades religiosas e ao bicho papão. o fundamentalismo desponta impedernido e bravo, prometendo mais alguns anos de escuridão pela frente. mal colocamos a cara pra fora, depois de anos de chumbo, e lá vêm eles, os neonazistas, os milicianos “do bem”, com seus assassinatos de meninos, sua chacina de índios, sua defesa da falida família tradicional, sua exploração predatória da natureza, seus lucros exorbitantes e seus celulares que valem mais que mil vidas de pretos pobres.

hoje as trevas deitaram sobre o país, com o Estatuto da família. se eu fosse homossexual, pensei, pedia exílio agora, e sumia de um país que não me enxerga, não me quer, não me respeita. não ficava pra perder essa guerra e ia existir em outro terreiro. raiva.

da mesma forma, me sinto rejeitada, mal amada e desprezada pelo meu país. infeliz e cansada com as portas que nunca se abriram pra mim, desprofissionalizada em dose dupla, envergonhada. ando visitando meus porões escuros, pisando no lodo do fundo do meu poço, refletindo e chorando muito por mim, pelo Rio, pelo Brasil. ando tomada dessa tristeza universal, querendo dar as costas pra terra que amo e que não me quer, sem ter como.  

Ai lembrei da Síria, e dos refugiados que preferem arriscar a vida a continuar na sua pátria amada. doeu aqui.

2barras 029

volto de viagem desanimadérrima com o Brasil, em especial com o Rio de Janeiro, cidade da qual posso falar, pq é aqui que vivo. cansada de tanta caretice disfarçada, percebo que finalmente colhemos o que plantamos durante toda a nossa história recente: um povo sem educação, sem cultura, com valores tacanhos e preconceitos mil, ainda cheios daquela velha opinião formada sobre tudo. A ignorância, no sentido da palavra, é a maior escuridão, a maior cegueira. temperado por essa sensação de superioridade tropical, o narcisismo carioca virou uma bomba cujos efeitos estamos experimentando. estamos ainda no tempo da depuração, vivendo nossa idade média, nos digladiando e levantando a cabeça do opositor como troféu. torço pra, se voltar brasileira, que seja daqui a mil anos luz, qdo os dinossauros que habitam a mentalidade cristã-tropical, sejam apenas fósseis nas sombras do tempo.

Viajando sozinha, flanando pelas ruas de Londres, debaixo de chuva e sentindo muito frio,  me permiti um breve descanso de um ano intenso de batalhas e conquistas. acabei fazendo uma viagem onde o silêncio de estar sozinha se transformou num misto de reflexão e contemplação desse admirável mundo velho. Esse que o maravilhoso, feliz e colorido Brasil jamais experimentou ou experimentará.

Demorei a entender o que era que me deixava tão bem ali. lá, no meio da rua do cidadão comum, as aparências já foram, há muito, substituídas por outros valores e vc pode ser azul de bolinha branca, que ninguém vai te julgar por isso. vc entra na livraria mega cult e a mulher te atende com um aplique de cabelo tipo Maggie Simpson, com uma maquiagem anos 50, séria e feliz, sendo como quer ser. No restaurante comum, o garçom usa alargador de orelha, tattoo na mão, dreadlocks lilás, amarradas no alto da cabeça como um espalhafatoso espanador e pronto. e vc acostuma e para de olhar pra isso com espanto. assim como vc vê uma coroa com um garotão num pub, bem à vontade, e uma gorda namorando um magro e uma velhinha bebendo sozinha e um velhinho vestido como um personagem de cinema e casais multi-étnicos e multi-etários, multi-sexuais e suas crianças furtacor. vejam bem: pra mim, que ainda estou no mundo das aparências, essa foi a lente pela qual identifiquei a liberdade.

me pego levemente envergonhada pelo Rio, cidade onde a aparência é tudo, malhar é tudo, ser gostosa é tudo. a espécie ainda não evoluiu pra perceber as outras qualidades e faculdades humanas. aqui vc não precisa ser, mas precisa parecer ser.

em Londres, cansada e desprovida de td censura, vestindo a capa da invisibilidade, experimento momentos da grandeza humana, sua história, sua transcendência e suas conquistas. choro no museu, que abriga a sabedoria de toda a humanidade e é de graça e está lotado. choro com o primeiro portrait de um homem negro, ex-escravo, que ganhou sua liberdade na Inglaterra. choro com o concerto de graça, na linda igreja cheia de jovens. choro pq na minha terra, onde a alegria é linda imperatriz, ainda estamos achando o espelho a melhor paisagem, estamos nadando no aquário, tolos, como se conhecêssemos o mar.

Corro atrás do tempo Vim de não sei onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio o vento Na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade