morada eterna

16/08/2016

A única certeza da vida é a morte. Ao pó retornaremos. Ainda assim, todo mundo se espanta com ela. Já tenho idade pra ter entendido que a morte tem que acontecer de qq jeito. E acontece. Nem sempre limpinha e bonita, nem sempre à altura do merecimento do morto, para o bem e para o mal. As pessoas têm um sonho cristão, de uma morte que transpareça a qualidade de quem morre: “…era um santo! morreu dormindo…”. No fundo, sempre fica uma esperança de ascenção, quiçá ressurreição ou de um reconhecimento premiado, agora e na hora de nossa morte, amém.  Se bem que,  uma morte digna, a esta altura do mundo, está muito mais ligada a questões sociais que espirituais. Viver e morrer ainda é melhor para os ricos que para os pobres.

A real é que a morte tem que ocorrer, do jeito que for. Uns morrem como uma luz que se apaga, outros em metáforas menos poéticas. No final, morte é morte. Acabou, fim. A energia retorna à matriz e volta a circular por aí. Pra mim, isso é que é vida após a morte. Com o passar do tempo, vemos nossas pessoas desaparecendo em progressão geométrica, mas nem todas na razão da idade. Muitas, na razão da vida que levaram, ou das surpresas do inesperado. Não tem lógica morrer uma menina de 12, com tudo pela frente e um velhinho com alzheimer vegetar pra sempre. Esquece a lógica. Entendi que o negócio é escolher como a gente vai viver, morrer é o imponderável. E deve ser bom, pq ninguém nunca voltou pra reclamar, nem pra matar saudades.

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Era um belo dia de sol no bairro carioca do Leblon, que fica na beira da praia mais calma da cidade, menos badalada, mais vazia. Fui encontrar um amigo. Fazia sol de verão em pleno inverno, temperatura alta, mar perfeito. Levei duas tangerinas numa sacolinha, uma para cada um de nós. Conversamos, mergulhamos, o mar subiu molhando nossas coisas, a canga ficou cheia de areia. Peguei na sacolinha, lembrei da tangerina, peguei uma pra mim: um estouro. Meu amigo não quis a dele. Coloquei as cascas e bagaços na sacola e joguei no lixo. Sobrou uma tangerina.

Eu havia estacionado a minha bicicleta ali perto e pretendia dar a minha pedalada habitual até o Arpoador, onde paro a bike e parto para minha caminhada pela areia, de frente para o sol e para a paisagem mais linda do mundo: o Morro Dois Irmãos ao entardecer. A sacola foi pro lixo, eu estava sem bolsa. Só carregava a pochete daquelas de montanhismo, onde cabe a garrafa de água, um documento, um chapstick e o dinheiro da água de coco da volta. O que fazer com a segunda tangerina, que eu não queria comer e não tinha onde colocar?

Agosto é um belo mês para as tangerinas: mexeriquinhas pequenas, pokans enormes de polpa meio ressecada e casca solta, mil tipos… Minha favorita é a murkot, aquela de casca agarrada na polpa, hiper suculenta, doce e carnuda. Na hora em que mordo um gomo de tangerina, quase acredito na existência de deus. Comprei muitas, minha casa está um showroom de tangerinas. Nesta época do ano, há cascas de tangerina espalhadas para secar, ao sol, nas janelas. Seco as cascas para fazer mil coisas. Uso para aromatizar a água básica do chá, uso ralada no tempero de peixe e frango, uso no purê de abóbora. As folhas, eu seco, guardo e uso muito, muito mesmo, durante todo o ano, em receitas que vou inventando na hora. Bolo de tangerina com casca e tudo é delicioso. Sopa de shiitake com folhas de tangerina. Frango assado no suco de tangerina é demais, casca de tangerina glaçada é o que há, filé de peixe assado com folhas de tangerina é “exquisite’. Isso tudo para explicar o quanto eu amo tangerina e o quanto acho que ela é a vedete da estação.

Mas o que fazer com a tangerina que sobrava? Olhei em volta e pensei: é fácil! Vou oferecer praquela ali, qualquer um vai querer. “Moça, vc quer uma tangerina?” Ela secava o corpo com a toalha, olhou, sorriu: “Não, obrigada”. Ao lado dela, um trabalhador, de macacão, descansava à sombra do quiosque. Quando cheguei perto dele para oferecer a fruta, ele nem me olhou. Foi logo balançando a cabeça em negativa e acenando com o dedo do não. Tangerina nem pensar. O rapaz que trabalhava no quiosque também não quis. A moça que passava nem me deixou explicar, passou direto, me evitando. Me senti a bruxa da Branca de Neve oferecendo uma maçã envenenada aos transeuntes. Por diversão e teimosia, decidi tentar até que alguém aceitasse minha doce e deliciosa tangerina. Nada. Todo mundo com medo, passando direto por mim, me olhando como se eu fosse dar a tangerina e pedir alguma coisa em troca. Eu só queria dar uma tangerina doce deliciosa e perfeita para alguém e ninguém queria. Eu ria. Dois surfistas riram, achando tudo estranho: não, obrigada. Um guardador de carros declinou: acabei de comer um doce. Um senhor que caminhava rapidamente entendeu meu drama, mas também não quis. Dois pescadores não quiseram, mas um deles disse: “obrigado pelo seu bom coração”. Por fim encontrei um homem sentado numa cadeira, ali ao lado do quiosque. Moço, vc quer essa tangerina? “Ô, meu deus, que sorte, que maravilha, não poderia ter aparecido em hora melhor, sou louco por isso!” Pegou a tangerina, levantou e começou a descascar a bela fruta, feliz da vida. Um outro, vendo a cena, disse: “Da próxima vez traga duas, eu também adoro, vou ficar na vontade”…

Moral da história: a sua tangerina pode ser a mais doce, mais perfeita, a mais deliciosa do planeta. Você pode estar oferecendo a sua linda tangerina de graça, com um sorriso nos lábios. Mas nem por isso você vai encontrar alguém que a queira. Isso também acontece com a gente, com nossos sentimentos, com as coisas que temos para oferecer para os outros e para o mundo. Nem sempre somos compreendidas, aceitas, queridas e desejadas. O que não significa que o que temos para dar não é bom. Às vezes, demora para encontrar quem queira nossa tangerina, mas isso não quer dizer que seja melhor a gente tentar oferecer maçãs, quando maçãs não estão no cardápio. Demora, mas quando a gente acha quem realmente aprecie nossa doce tangerina, a gente entende o sentido da vida. A gente entende o porquê da nossa barraca nessa feira moderna…
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*post publicado originalmente no primeiro endereço deste blog, não sei exatamente quando. escrevi quando a minha afilhada mais velha, a Ju, terminou um namoro e ficou arrasada pq o menino não queria mais ela. Lembrei do texto agora pq minha afilhada 2, a Mari, também terminou um namoro e tá arrasada. As minhas meninas, não! Se soubessem como são lindas!

mitológica

24/07/2012

andei sumida. a vida tem horas que é indizível. escrevi e parei no meio de mil posts. experiências impossíveis de transmitir. o ano que passou vai ficar pra sempre na memória como aquele em que não enlouqueci. desisti, claro, mas não contei pra ninguém, pq se a gente desiste publicamente, tem que dar satisfação, explicar o inexplicável. a mãe fica sem dormir, o pai fica ligando pra saber se está td bem, a irmã não tem como ser mais fofa tentando ajudar, os amigos ficam querendo fazer alguma coisa, sem poder.  sumir no mundo foi o único sonho que me restou. amor é uma coisa maravilhosa de ter, e aceitar o amor é a melhor auto-ajuda que existe. em respeito a tanto amor e delicadeza, desisti mas fiquei quieta, em silêncio, sabendo que tudo passa, que não adianta ficar desesperada e que o momento presente é o que importa. só me mexia quando alguém estava olhando, cumprindo a tabela do esperado. É uma tática para se parecer vivo, quando não se está. tudo muda, as coisas boas e ruins, não tem jeito. sabendo disso, sobrevivi.

recuperar e ressignificar uma vida é uma reconstrução cansativa, dolorida, que traz sempre a sensação do Sísifo, aquele eterno infeliz mitológico que passou a vida empurrando uma pedra montanha acima, só pra vê-la despencar lá do alto e começar tudo de novo. pointless. sou acidentada por dentro. tenho um senso cruel de realidade e não-sonhos por causa de um fio terra que nunca me libera. o medo da prisão aprisiona. minha sobrinha de 11 anos falou que eu sou como aquela personagem da novela que diz: “ainda não nasceu o homem que vai mandar em mim”.  acertou, a bandida.

melancholia

22/06/2012

só consigo pensar naquele planeta do filme Melancholia. como se pensasse, obsessivamente, num homem que tive e que não me sai da cabeça. toda hora a lembrança dele vem me rondar, me seduzir de novo. E as pernas vão bambeando, o chão vai sumindo, a base da espinha fica amortecida, escurece tudo: desejo tão arduamente ver Melancholia azulando toda a minha janela… primeiro, remoto como uma lua, depois, cada vez mais perto, quase fechando o quadro da janela, até que blam! Melancholia, quero sentir sua invasão, quero ir à explosão com vc,  quero que vc detone tudo e não permita que pedra reste sobre pedra. quero acreditar na gente projetada, pulverizada no universo, poeira de estrelas, brilhando em um quaquilhão de partículas sem volta, sem acordar, sem nunca mais ter que ter futuro.

O I ching, oráculo chinês das antigas, tem lá um jeitão todo particular de dar recados, tipo assim:

“Retirar-se não é o mesmo que fugir. Na fuga, busca-se apenas salvar a si mesmo, a qualquer preço. A retirada, ao contrário, é um sinal de força.”

Eu sou do tipo última-a-sair. Obsessiva, compulsiva e lenta nos movimentos. Mas até eu sei que tem uma hora em que tem que pedir a conta, pagar, levantar e sair. E dar as coisas por terminadas. Desapegar, desencanar, acreditar que o fim não é necessariamente ruim. O fim pode ser encarado como começo.

A gente, muitas vezes, insiste em permanecer onde está, por apego e por achar que a gente pode dominar tudo e mudar o rumo das coisas.  Muitas vezes esgarcei intenções, requentei desejos e tentei reeditar sonhos, em vão. Eu também sou do tipo que acha que tudo na natureza, incluindo nós, funciona em ciclos. Amor, casamento, namoro, amizade, trabalho, fases, lugares, turmas. Não é só o que é ruim que tem que acabar. Coisa boa também acaba. Eis a questão: a hora de pedir a dolorosa e bater em retirada com toda honra e toda glória.