domínio público
07/11/2019
Sábado à noite. Festa. Pessoas vão chegando, se falando, pegando suas bebidas, encontrando suas cias e seus lugares pra ficar. A noite está começando, é fim de semana. A moça encosta ao meu lado, em frente ao balcão das bebidas e suspira: “Aff, vou ter que beber esse carboidrato”. Pega uma cerveja e sai, me deixando atônita e quase culpada por não estar reduzindo o ato de tomar uma cerveja, com amigos, numa festa, a “beber carboidrato”.
Pouco tempo depois escuto outra moça comentando sobre a empadinha: “ai, que delícia, amanhã vou ter que ficar o dobro de tempo na esteira”, ao que a mulher ao lado morre de rir e concorda, balançando a cabeça: “ah, a gente tem que correr atrás, é isso aí, amiga”. A moça do carboidrato líquido, encosta ao lado de alguém e justifica mais uma vez a sua transgressão, ouço ao longe: “eu nem ia beber hoje, esse carboidrato todo é foda, pão líquido, né?” Seu interlocutor faz cara de “foda-se” e manda pra dentro o resto da long neck, de uma vez, dando meia-volta e deixando a moça falando sozinha.
Há momentos de dieta, de doença, de detox, e de tratamentos na vida. Eu sei. Eu já fiz milhares disso tudo. Já fiquei sem beber e sem comer nada por milhares de dias da minha vida. Já optei por não sair de casa, qdo a restrição me pareceu impossível de lidar e já fui pra festa beber água sem comer nada. Já odiei ter saído e voltei correndo pra casa, no humor mais suíno da terra, e já fiquei de boas, fumando um e bebendo água, sem me sentir mal por não estar compartilhando dos comes e bebes. Cada um sabe de si, do seu momento, da sua dieta. Não estou falando disso.
Estou falando de um comportamento especialmente comum às mulheres, que estão sempre se desculpando, publicamente, por não estarem no peso que deveriam, por estarem comendo em vez de estarem passando fome pra chegar no tal “peso ideal”. Elas têm tanta certeza de que a aparência é a coisa que mais importa, de domínio público, que entendem que o mundo está esperando uma satisfação sobre a sua conduta alimentar. E se desculpam, e explicam. E aceitam um pedaço de pizza e confessam a culpa. E acham que esse assunto interessa às pessoas que estão na mesa do bar com elas, na festa com elas, tentando ter um minuto de descompressão da vida bandida.
O corpo feminino é historicamente tratado como posse alheia e as mulheres são as primeiras a permitirem que assim seja. Estão sempre comentando a aparência umas das outras, como se isso fosse a coisa mais importante. Toda gorda escuta: “vc emagreceu?”, mesmo sem ter emagrecido, numa mistura de sugestão e de esperança da outra, que quer testemunhar o emagrecimento obrigatório. Toda gorda deve querer emagrecer. Não tem escolha. Se não ficar magra não casa, se não emagrecer não pode entrar na igreja de noiva, se não perder peso perde o marido, se engordar é safada, gulosa, sapatão, suvaco cabeludo, mulher macho. “estamos preocupados com a sua saúde”, diz a hipócrita bebendo coca zero e comendo salsicha.
Os movimentos anti-gordofobia, as tentativas de normalizar o plus size, emplacam a passos de cágado, mesmo nesta sociedade globalmente acima do peso. As mulheres gordas estão tentando existir fora do holofote do ridículo, querem pleitear o direito à beleza. Mas a sociedade continua dizendo que “ela tem um rosto lindo, que pena” e fingindo que aceita suas barrigas expostas pelas blusinhas cropped. Pegue os últimos 20 trabalhos de um fotógrafo de casamento e veja se tem alguma noiva gorda. Depois me conta.
Enquanto as próprias mulheres se desculparem por não estarem com o corpo ideal, enquanto julgarem outras mulheres pela aparência, enquanto comentarem a aparência de outras mulheres como avaliação, como uma banca de exame, nada disso vai mudar. Como o machismo, que precisa mudar na estrutura, entre os homens, a descoisificação da mulher precisa começar pelo olhar de mulher pra mulher. Até lá, seremos uma sociedade de mulheres acima do peso se sentindo sempre em dívida, erradas, pecadoras, safadas e doentes.
E se sua amiga estiver gorda e bebendo e comendo na festa, apenas brinde a vida com ela, resista à tentação de ser educativa e julgadora. Vamos combinar que caloria se conta em casa e cada uma conta as suas.
Antiguidade é posto
14/03/2019
A primeira vez em que pisei no IACS (Instituto de Artes e Comunicação Social – UFF) era o segundo semestre de 1982. Eu era aspirante a cantora, quase bailarina, entrando na faculdade de Comunicação porque gostava de escrever.
O IACS parecia um velho colégio, a quadra de esportes na frente do casarão descascado, gente jogando bola. O revestimento do teto da casa estava meio vazado, aqui e ali, com a fiação cansada semi-exposta. Quando chovia muito, a luz faltava e íamos pra casa. Se chovia à tarde, nem íamos. Inútil atravessar a baía pra bater o pique na Lara Vilella e voltar. As tábuas do piso rangiam, cedendo com o peso dos passos. Uma aventura quase arqueológica. A cantina ficava na casinha da frente, e a gente esperava a fornada sair pra comer sorrisos. O professor Serra, e seu cachimbo, já reinavam no departamento de Comunicação.
Eu gostava de escrever, mas atravessar a Baía todos os dias me enfraqueceu o propósito e me afrouxou o desejo. Eu dançava de dia e cantava na noite, e a faculdade foi perdendo o charme. Fui parando, parei. Sem trancar. Certa de que jamais voltaria ao assunto, com tanta estrada musical ainda a percorrer.
Virei cantora profissional, aposentei a sapatilha e continuei escrevendo. Textos de divulgação pra mim e pros amigos, revisão, tradução. Por isso, 13 anos depois de ter largado a faculdade pra lá, dura feito um coco, temendo não ter como sustentar a carreira de cantora, decidi voltar pra faculdade pra cursar Jornalismo e ativar um plano B, no qual Clark Kent sustentaria a carreira caríssima do Super Homem.
Entrei em contato com a faculdade:
– Quero voltar pro curso que abandonei.
– Você pode prestar vestibular e aproveitar as matérias cursadas
– Sem vestibular, eu disse, eu já passei no vestibular, não preciso passar de novo.
– Ué, mas isso não existe, o prazo expirou. Só se você entrar com recurso.
– Então quero entrar com recurso.
– Escreve uma carta pro Reitor.
Escrevi. Na data prevista recebo a resposta:
– O reitor liberou. Agora você tem que ver lá na Comunicação. Se toparem, você volta.
Quem era o diretor do departamento de Comunicação? O bom e velho professor Serra, de quem me lembrava, daquela breve passagem pelo IACS, nos anos 80.
– Quero voltar, Serra, me deixa voltar! Agora eu quero de verdade, vou até o fim, vou ser uma ótima aluna!
Quando pisei pela segunda vez no IACS, em 1996, a quadra tinha sumido e o casarão estava reformado, mas não perdera seu charme arqueológico. Eu delatava minha antiguidade pelo número de matrícula, que começava com o ano de ingresso. Minha primeira temporada ali começou em 82-2.
Em dia de votação pro DA, na fila com um colega, chego na boca da urna e digo, em voz alta, meu número de matrícula: 82-2XXXX. Meu colega dá aquele pulo: Caraaaaca, eu nasci em 82!
Me formei na turma de jornalismo de 2000, aos 36 anos. Trabalhei 12 anos na imprensa. Gravei mais de 10 CDs e um DVD. Continuo escrevendo e estou comemorando 35 anos de carreira de cantora.
Quando fui ao IACS, pela última vez, ele tinha virado praia.
*o IACS é o Instituto de Artes e Comunicação Social, da UFF – Universidade Federal Fluminense. Este texto foi uma encomenda para o aniversário do IACS. Como não tocaram mais no assunto, decidi postar aqui pra ele nao se perder. Tenho as lembranças mais queridas daquele lugar e daquelas pessoas.

complete makeover
09/05/2017
Adoro maquiagem, desde sempre e, como já fiz de tudo um pouco, andei por aí maquiando amigas sem o talento pro negócio, e algumas mulheres da família, em ocasiões especiais.
Comprei uma maleta de ferramentas, enchi de maquiagem e acessórios e lá ia eu, quando tinha 20 e poucos anos, maquiando amigas em camarins e festas. Nos anos 80, comprei um delineador no brechó pq, estranhamente, não havia delineadores à venda no Rio e fazia olhos muito pretos, com o delineador bem puxado, olhos de Marylin. Logo depois, a moda voltou. Aos 17 anos, eu usava sombra preta, degradée, esfumada, muito kajal e levava o lápis preto na bolsa, para retoques e o brilho roll-on Lip Potion, sabor chocolate com menta, pra dar aquela finalizada no look 80’s.
Quando eu maquiava minha mãe, lá pelos seus 40 e tal, percebi que, com o tempo, foi se tornando necessário puxar o olho pra esticar a pele da pálpebra, que não tinha o tônus dos meus 20 aninhos. Discreta, pra não chatear a minha mãe, nunca fiz qq comentário sobre o assunto e fui o mais cuidadosa possível com as marcas do tempo na sua linda pele e seu lindo rosto. Minha mãe é linda ainda hoje, aos 80, provavelmente pq nunca fez um botox ou uma plástica na vida.
Dia desses, me maquiando para um show, percebi que uma pálpebra está mais caidinha que a outra, e que preciso dar aquela puxadinha pra esticar a pele e a maquiagem ficar perfeita. E nem fica muito, pq a gravidade é uma realidade inexorável que me faz entender porque existe cirurgia plástica e porque tantas pessoas recorrem a ela. Não é fácil ver o rosto mudar de forma, a pele mudar de textura, de cor, de tudo. Não é fácil fazer a passagem para a maturidade, ainda mais quando a gente se sente tão jovem, com a vida inteira pela frente. Meus olhos não correspondem ao meu fogo interior.
Por fora sou uma jovem-coroa gordinha de Copacabana, com cabelos cor de fogo. Desglamurizada do meu nome, da minha profissão, da minha distinção. Apenas mais uma coroa ruiva, gordinha e simpática de vestidinho florido e sandalinha, passeando pela rua de Copacabana, com meus brincos, minhas pulseiras, mais uma. O anonimato é uma bênção. Que conforto simplesmente ser uma qualquer. E ver que o tempo deixa a pele cansada, mas revigora a alma.
Até hoje quebro ovos do jeito que vi num filme, na infância. Acho que era o Jack Lemon fazendo um omelete pra Marilyn, ou pelo menos é assim que lembro. Aquilo me pareceu tão genial e definitivo que, mesmo criança, gravei o movimento e repito até hoje. Continua sendo a melhor forma de quebrar um ovo.
Todas as vezes em que acendo um fósforo, lembro do Felipe dizendo: vai rodando devagarzinho, pra chama pegar direito. Rodo o palito de fósfoto, controlo a chama, e dá sempre certo! E assim aprendi um monte de coisas na vida, observando as pessoas e escutando os conselhos.
Depois minha irmã me falou sobre o inventário de referências de valores pessoais. Quem ensinou o quê, quem mostrou o quê. Achei genial de novo, pq é exatamente o que eu faço, desde o Jack Lemon. Internamente, sempre dou o crédito pra quem me ensinou um gesto, uma palavra, um atalho, uma solução. E esse é o meu inventário mais precioso, minha memorabilia, meu museu, minha enciclopédia de degraus, minha história.
apocalipse now
09/11/2016
Qdo me perguntaram o que eu desejaria como última refeição, no corredor da morte, caso eu alguma vez o visitasse, pensei: peixe frito com cerveja. Robalinho, trilha, sardinha… Peixe frito, pra mim, tem que ser inteirinho e pequeno, passado no fubá, acompanhado de limão cortado na hora. Cerveja tem que estar glacial. Fritura mora na rua, ao lado da cerveja gelada. Delícias que visito e desfruto com respeito, na rua.
Comprei peixe fresco e temperei com limão, pimenta e alho. Era pra assar. Uma amiga veio trocar ideia, sobrou cerveja.
Golpes, Temer, Crivella, Cabral/Pezão. Trump. O mundo acabando, na minha frente.
Salguei o peixe, passei no fubá, e usei azeite, muito azeite de verdade. E fritei peixe em casa, pela primeira vez. E abri a cerveja. E cortei o limão.
Foda-se.
pileque
10/10/2016
Sentada na cadeira do dentista, procuro por um pensamento que me tire dali, um tapete mágico que isole o barulho do motor, o desconforto da anestesia, a aflição da invasão. Não encontro. Lembro da última vez em que fiquei apaixonada e de como eu adorava ter oportunidades, como essa, pra desligar do mundo e ficar só assistindo àquele filme. Primeiro beijo, desejos multiplicados e compartilhados, compacto das melhores cenas, renovando o encantamento. Como uma semideusa, as humanidades baratas não me atingiam. Debaixo dos pés eu trazia nuvens, e quem traz nuvens nos pés não pisa no chão dos mortais. Vai longe a última paixão. Não guardo em mim nenhum rastro dessa dulcissima ilusão à tôa. A paixão é, de longe, o melhor pileque que já tomei.
mundo invertido
25/07/2016
descobriram a cura não-cirúrgica pra articulações defeituosas e o fim da dor crônica. Inventaram o fim da menopausa e da devastação que ela provoca.
Hoje recebi um email me chamando pra um projeto maneiro, no Brasil, com cachê digno.
Encontrei uma boa parceria de trabalho que me apóia, investe no meu trabalho, me promove, marca shows pra mim, pensa em projetos, faz a produção e a divulgação.
Fui convidada pra fazer uns shows na Europa, com passagem e estadia e até cachê.
Os festivais internacionais pra onde mandei material responderam minhas mensagens e fui aprovada pra participar de uns.
Consegui entrar no edital pra gravar meu DVD e tenho trabalho no ano que vem, e meus parceiros vão ganhar pra trabalhar dignamente.
Este ano, vou gravar meus projetos e vou poder pagar um profissional para resolver pra mim o que não consigo resolver sozinha.
Ganho o suficiente para me manter e investir na minha carreira e na minha vida e pra fazer planos.
Tenho direito a férias.
Tenho direito a sonhos.
52
30/06/2016
não quero que o tempo seja um tornado que vem se aproximando, prometendo só arrancar as árvores e os telhados das casas, matar os animais e secar os rios. Não quero que o tempo seja um fardo, um estorvo. Quero viver esse tempo com amor, abraçar essa vida com gosto, suas teias, seus ninhos de passarinhos, seus musgos, suas florações e seus estios. ciclo que me inclui. nunca paro de renascer.
não quero que a realidade seja insuportável, que eu precise viver de olhos fechados pra suportar as coisas como são. o ocaso de uns, a aurora de outros. quero olhar as coisas como são, de mulher pra mulher. e falar, sim, ok, vou encarar de coração aberto. e vou me esforçar pra achar o lado bom do inevitável. e vou comemorar por estar inteira, de pé e morrendo de rir e de cantar, cercada de tanto verdadeiro amor dos meus amigos e da família.
a idade não será um castigo. envelhecer não será um motivo pra me esconder. amadurecer será mais uma das coisas boas da vida. potência plena ocupada. espaço dinamizado. expansão e visão panorâmica. vejo mais, cobiço mais, quero mais.
O golpe
16/04/2016
Esses dias assisti a uma série chamada Auschwitz, do Netflix, contando a história do maior campo de extermínio de toda a história da humanidade. Um milhão e cem pessoas foram mortas ali. A série fala sobre como a ideia de Auschwitz foi engendrada, seus idealizadores, seus funcionários, sua estrutura. São documentos, atas de reunião, deliberações e até depoimentos de quem sobreviveu, dos dois lados, prisioneiros e agentes da SS. Das 8 mil pessoas que trabalharam no campo de extermínio, menos de cem foram condenadas. Alguns tiveram penas bem brandas, como o homem que recolhia e contava e depois distribuia o dinheiro dos que chegavam ao campo. Ele só foi condenado, em 2015, a míseros quatro anos de prisão.
A série é para quem tem estômago forte, me despertou sentimentos cujo nome nem sei e estou há dias elaborando essa tristeza profunda. A coisa mais assustadora, entre tantas coisas aviltantes e aterrorizantes, é ver a tentativa de justificativa daqueles que pensaram na “solução final” e que elaboraram os planos de morte, os projetos dos fornos e dos crematórios. As crianças, as mulheres, os velhos e os doentes chegavam no campo direto pro forno. Pensa bem. Alguém teve essa ideia e escreveu o projeto que foi acolhido pelos seus comparsas: “puxa, que ótima ideia! queimar as crianças logo de uma vez…” E depois fumaram charutos e foram todos pra casa dormir em paz, no seio da família, enquanto fornos queimavam pessoas 24h por dia, 100 mil pessoas por dia.
Eles todos alegam ter motivos, uns falam da atmosfera do momento, outros que estavam trabalhando, cumprindo ordens e alguns até deixando escapar que ainda concordavam com a ideia da “solução final”. O mandante de Auschwitz, em suas memórias, explica tudo, e jamais se arrependeu ou pediu perdão ou achou que errou. Ele achava lindo o plano. Foi levado a Auschwitz para ser enforcado olhando para o monumento ao horror, que construiu.
Vendo essa loucura tomando conta do Brasil, os discursos que tentam justificar o injustificável, às vesperas de um golpe que vai tirar a democracia de cena e empossar, mais uma vez, os pulhas, os canalhas, os criminosos confessos e condenados, para que dancem na cara da gente, rindo com escárnio por não termos o direito de escolha, por sermos o gado enganado pela mídia criminosa, pelos ardis mais imundos, para que os que sempre mandaram e mamaram na miséria deste país continuem reinando, incólumes e com autorização legal.
Dentro de mim, é como se visse o 3º Reich subindo no pódio, vencendo, mais uma vez, pisando na cabeça dos mortos pela democracia e de nós todos, que um dia achamos que também tínhamos direito a viver em um país que olhasse para sua gente. Ledo engano. O Brasil não é para os brasileiros. É pra eles. E eles estão aqui agora, mas já estiveram em Auschwitz, no massacre dos armênios, no Boko Haram, no terrorismo religioso que mata inocentes e no governo que tira a merenda escolar das crianças. Se eles ganharem no domingo, voltamos pro campo de concentração.
quiet storm*
03/04/2016
vc era estranho. formal. sério. daquele tipo que aperta a mão e tem um jeito desajeitado de dar dois beijinhos e de abraçar sem encostar. olha nos olhos de leve, ri de lado, e nunca manda beijo na assinatura do email. um abraço, no máximo. mas naquela primeira reunião presencial, numa camada acima daquela onde estavam nossos computadores com mil abas abertas, onde a produção bombava, onde eu aprendia com vc, senti um calor borbulhar bem no centro da mesa. me ajeitei na cadeira um pouco desconsertada, dei um gole na limonada aguada, pedi um café.
quiet storm. lembrei do baile charme, da música pra sensualizar. quiet fire. tive vergonha de te desejar, porque vc não é meu tipo, aquela nao era a ocasião, nem o lugar. mas passei a semana pensando naquela centelha que pingou ali, entre tablets e notebooks e fez um buraco no epicentro da mesa de reunião. não sei se vc reparou. mas eu vi.
quando nos reencontramos, raramente e exclusivamente a trabalho, sinto um pequeno desconforto por não saber o que fazer com esse tesão infundado. depois a vida passa seu arrastão e leva tudo.
hoje eu te vi com uma mulher. numa mesa de bar, bebendo e beijando o beijo mais lascivo, lambendo pescoço, cheirando, idolatrando, endeusando, querendo aquela mulher, como se ninguém estivesse em volta. pura luxúria. assisti de longe seu desejo derrubando paredes, atravessando avenidas, escalando penhascos, invadindo quartos pela vidraça, descabelando e entortando a linha do horizonte.
eu sabia.
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*para ouvir Quiet Storm: https://www.youtube.com/watch?v=ETGXvWFoEi0&list=PLZLxC6rAOhrjdK3Tnm6Onti5OQziuFu-E
English Lavender
08/03/2016
vc era alto. e eu gostava de andar pelas ruas de Laranjeiras pendurada em vc, na ponta dos pés, escalando seu braço, até quase alcançar seu pescoço, onde morava aquele perfume, que um dia, bem depois da felicidade, procurei na prateleira da drogaria. era tanta saudade que entrei na farmácia, junkie em privação, peguei o frasco de colônia e cheirei. uma cafungada certeira que bateu no fundo. depois botei de volta o vidro fechadinho e fui embora com o os pulsos encharcados de perfume, e fui cheirando e chorando pela rua. roubei o cheiro da lavanda, mas seu cheiro, aquela nota de fundo que era só sua, não estava lá. eu tinha orgulho de exibir pro mundo que vc era meu, que éramos tão estupidamente felizes, e que nem adiantava comparar, porque nenhum humano jamais saberia o que era aquilo que a gente tinha. nosso amor, nossa cumplidade. Era English Lavender, o cheiro.
ensaio sobre a surdez II
02/02/2016
hoje encontrei com três pessoas amigas que falavam ao mesmo tempo, o tempo todo. nenhuma ouvia a outra, mesmo, aparentemente, estando interessadas e adorando umas às outras.
na sala de espera do dentista, um rapaz comentava sobre uma linda praia deserta em Pernambuco e uma louca interrompeu a conversa, dizendo que conhecia a Bahia (?!) e que lá, sim, tem as melhores praias desertas do mundo. nem deixou o cara acabar de falar, contou a viagem dela toda, as praias que conhece, onde passou as férias na infância e foi embora, deixando aquele silêncio retumbante no ar.
eu estava mancando. uma pessoa reparou e me perguntou o porquê. mal comecei a explicar, na minha terceira palavra, fui atropelada pela descrição dos diagnósticos de todos os problemas de joelho, quadril, bico de papagaio, tornozelo, e um pouco da menopausa que a está deixando louca. saiu sem saber o que tenho.
estou me sentindo acuada e oprimida pela falta de educação, de alteridade e de gentileza dos cariocas. esta cidade é um amontoado de narcisos metidos a simpáticos. não é à tôa que adoram o profeta gentileza, um cara mega grosseiro e antipático, que nunca praticou o que pregou.
a luta
26/01/2016
a primeira vez em que meu nome saiu no jornal, como cantora, foi em 1983, mais de 30 anos atrás. mas considero o começo oficial da minha carreira, dedicida, escolhida, no ano de 1987. Foi lá que decidi que aquela apresentação que eu já fazia havia anos, a partir daquele momento, passaria a ser um show. mudou a perspectiva, tamos aí. não é fácil, em verdade vos digo, não é fácil. aqui comigo mesma tenho mil contas pra fechar, todas bem pessoais e que, certamente, não se resumem a aparecer na TV ou tocar na novela. muito, muito além…
não gosto de reclamar, mas tenho reclamado, nao sei se é da idade ou se as coisas estão péssimas, mesmo. mas me esforço pra não reclamar, nem pra fora, nem pra dentro. tento, como me sugeriu minha irmã, focar no que tenho e não no que não tenho. e quando vejo um artista se referindo ao seu trabalho como uma luta, me pergunto se essa não é a deixa pro cara mudar de ramo. se aquilo que se faz por dom, necessidade e prazer vira uma luta, um drama, um sofrimento com o qual se precisa conviver, sentindo dor, nao seria a hora de parar? quanta tristeza e desilusão são necessárias pra um artista decidir parar? por que é tão difícil desistir do que está ruim? o artista é quase sempre como o amante que vive na esperança de seu amor, enfim, dar-lhe o devido valor.
balanço
31/12/2015
na época da inocência
14/10/2015
queria que fosse de novo carnaval e a gente estivesse tomando porradinha de Fanta laranja com Velho Barreiro, no Varandão, fazendo um vira-vira que a gente nem sabia que era tão perigoso e tão sexy. e que a gente estivesse escolhendo que roupa vestir no baile de carnaval e, depois, dia amanhecendo na Serra, a felicidade de listar os beijos em bocas cujos nomes nunca soubemos: surfista, lourinho, moreninho, mineiro…
e queria de novo sentir o jato gelado do éter entrando pelas narinas e batendo no teto do crânio, em cima daquela moto na madrugada fria, zzzzziiiiiimmm, zumbido e gargalhada, “‘caraaaalho, vou decolaaar!’. ou então voltar àquele dia em que o cheirinho da loló foi calibrado pelo amigo químico e a gente ficou na lua, projeção astral e o escambau, pelados na cama, rindo de nós mesmos e do susto que levamos. ou então entrar naquele avião rumo ao Recife, pra reconhecer meu amor galego dos óio azul e casar com ele no hotel muquifo do centro velho da cidade.
queria estar ensaiando a música pra entrar no meu primeiro festival. tocando um violãozinho tosco, toda compenetrada, subindo no palco da escola de macação branco, que recém cabia em mim, e levando meu primeiro prêmio de cantora pra casa, e acordando a minha mãe: “tá vendo? ganhei!” queria de novo estar atravessando a Ponte, indo gravar meu primeiro disco, toda a estrada do sucesso à minha frente
queria estar passando sombra preta com glitter, pra ir dançar numa discoteca, de salto 12, ou então estar calçando os patins pra ir ao Roxy Roller rodar rodar rodar naquela gira. ou ir ao Disco Voador fazer playback pra 10 mil pessoas ou cantar mais uma vez pro mar de gente no Reveiilon de Copacabana.
queria estar recebendo aquele ursinho com a carta de amor no bolsinho do macação. Ou um milhão de eu te amos escritos num micro rolinho de papel, que ele cuidadosamente enrolou e guardou dentro de uma sapatilha rosa de biscuit. queria ser bailarina de novo, um milhão de pliés todos os dias e depois a rotina do tap, passo a passo, time steps. então, eu escreveria em tinta branca, novamente, um Eu te amo gigante, no meio da rua Estelita Lins, de madrugada, de forma que ele acordasse e quando abrisse a janela, visse o meu amor escancarado no asfalto. queria chegar na aula de canto e encontrar toda a fachada do prédio do professor coberto por uma tira de eu te amos e “boa aula, meu amor”. queria o fim de semana na Serra, ouvindo Pat Metheny e vendo Jacques Cousteau sem som. e comendo pipoca e tomando vinho de garrafão e fumando maconha e fazendo amor, over and over and over.
queria tudo de novo. não por nostalgia, mas porque eu gostaria de zerar essa desilusão, construir os sonhos e confiar no porvir, na potência, no destino, na sorte, no amor. aquela alegria que não cabe no peito nem no sorriso, só porque sim. e ter mil planos de viajar, de fazer turnês internacionais, de morar fora, fazer sucesso no Brasil, ter filhos, ficar rica, comprar uma casa cercada de jardins de inverno, fazer minha viagem dos sonhos, num 4X4, de mapa na mão, pelo interior do Brasil, e encontrar um grande amor cúmplice parceiro, em quem se pode confiar de olhos fechados. tudo isso, só porque a gente acredita que nasceu com uma estrela brilhando na cabeça e tudo, tudo vai dar certo.
nós, os exilados
25/09/2015
tempos pesados. apartheid social no Rio, a verdadeira face do carioca aparecendo, o mito do brasileiro gente boa, cabeça aberta, por terra. somos caretas, ignorantes, tementes a autoridades religiosas e ao bicho papão. o fundamentalismo desponta impedernido e bravo, prometendo mais alguns anos de escuridão pela frente. mal colocamos a cara pra fora, depois de anos de chumbo, e lá vêm eles, os neonazistas, os milicianos “do bem”, com seus assassinatos de meninos, sua chacina de índios, sua defesa da falida família tradicional, sua exploração predatória da natureza, seus lucros exorbitantes e seus celulares que valem mais que mil vidas de pretos pobres.
hoje as trevas deitaram sobre o país, com o Estatuto da família. se eu fosse homossexual, pensei, pedia exílio agora, e sumia de um país que não me enxerga, não me quer, não me respeita. não ficava pra perder essa guerra e ia existir em outro terreiro. raiva.
da mesma forma, me sinto rejeitada, mal amada e desprezada pelo meu país. infeliz e cansada com as portas que nunca se abriram pra mim, desprofissionalizada em dose dupla, envergonhada. ando visitando meus porões escuros, pisando no lodo do fundo do meu poço, refletindo e chorando muito por mim, pelo Rio, pelo Brasil. ando tomada dessa tristeza universal, querendo dar as costas pra terra que amo e que não me quer, sem ter como.
Ai lembrei da Síria, e dos refugiados que preferem arriscar a vida a continuar na sua pátria amada. doeu aqui.