pileque
10/10/2016
Sentada na cadeira do dentista, procuro por um pensamento que me tire dali, um tapete mágico que isole o barulho do motor, o desconforto da anestesia, a aflição da invasão. Não encontro. Lembro da última vez em que fiquei apaixonada e de como eu adorava ter oportunidades, como essa, pra desligar do mundo e ficar só assistindo àquele filme. Primeiro beijo, desejos multiplicados e compartilhados, compacto das melhores cenas, renovando o encantamento. Como uma semideusa, as humanidades baratas não me atingiam. Debaixo dos pés eu trazia nuvens, e quem traz nuvens nos pés não pisa no chão dos mortais. Vai longe a última paixão. Não guardo em mim nenhum rastro dessa dulcissima ilusão à tôa. A paixão é, de longe, o melhor pileque que já tomei.
English Lavender
08/03/2016
vc era alto. e eu gostava de andar pelas ruas de Laranjeiras pendurada em vc, na ponta dos pés, escalando seu braço, até quase alcançar seu pescoço, onde morava aquele perfume, que um dia, bem depois da felicidade, procurei na prateleira da drogaria. era tanta saudade que entrei na farmácia, junkie em privação, peguei o frasco de colônia e cheirei. uma cafungada certeira que bateu no fundo. depois botei de volta o vidro fechadinho e fui embora com o os pulsos encharcados de perfume, e fui cheirando e chorando pela rua. roubei o cheiro da lavanda, mas seu cheiro, aquela nota de fundo que era só sua, não estava lá. eu tinha orgulho de exibir pro mundo que vc era meu, que éramos tão estupidamente felizes, e que nem adiantava comparar, porque nenhum humano jamais saberia o que era aquilo que a gente tinha. nosso amor, nossa cumplidade. Era English Lavender, o cheiro.
love songs
27/07/2013
amigos, café, chocolate, vinho do porto, fumo. a música é variada. coisas que a gente nunca mais cantou, e cujas letras emergem dos subterrâneos da memória, trazendo junto avalanches de lembranças e cheiros e cores de outras vidas. e os amores. penso nas paixões que vivi, no fracasso da minha vida amorosa, nas péssimas escolhas que fiz, nas incontáveis frustrações. volta a velha e permanente sensação de que o meu pacote de serviços não inclui amar e ser amada. embora esteja acostumada, tenho me sentido só. quem, nunca? deve ser o inverno. ou a idade. ou o vento. passa. canto canções de amor e, por dentro, me sinto uma impostora. as canções de amor quase perderam o sentido pra mim, é como se eu cantasse sobre um unicórnio, sobre uma fada, um dragão, ou atlântida. ausência ilustre, lâmpada queimada, terreno baldio, corda quebrada de violão. amor: meu continente perdido.
canceriana*
05/04/2013
lembro de detalhes de coisas, mas não lembro das coisas. lembro de um momento x no Rock in Rio 1, mas não lembro que shows vi, nem quantos dias fui, nem mesmo em quantos rock in rio eu fui, como as pessoas lembram. mas lembro bem do cheiro da lama, da roupa grudada de chuva.
também não lembro como foi o show do Elton John, que vi em Londres, embora lembre da sensação de estar num megamastershow pela primeira vez, Wembley, todo aceso! e do brilho prateado dos programas do show. Louder than concorde, but not quite as pretty. canceriana: vão-se as lembranças, ficam as impressões.
imagino que Proust deve ser chatíssimo pra um monte de gente! aquelas super impressões em nanodetalhes. pra mim, deliciosa sintonia fina. não lembro exatamente como foi meu primeiro beijo, mas da atmosfera. da primeira vez, só flashes. da melhor noite, a vibração, cenas desconectas. e palavras. dos momentos importantes da minha vida, lembro pontualmente, muitas vezes só de um detalhe que não me escapou e marcou a cena: um som, um gesto, um jeito. instantâneo quase fotográfico, que assina o momento, inconfundivelmente.
a memória é como um repertório vasto, vastissimo, de palavras e cenas empilhadas e de significados emocionais todos que há. mesmo os que a gente nem imagina. adoro usar esse repertório, não pra lembrar, não pra sentir saudade. não tenho nostalgia de nada, de época nenhuma, de nenhum momento da minha vida ou da humanidade. zero inveja, zero remorso. simplesmente nao penso pra trás, embora isso contrarie, dizem, os preceitos do sol em câncer. mas adoro colecionar esse repertório para usar, como arsenal, como minha arma doce, minha biblioteca de impressões, minha língua só minha, minha lente. coisa de canceriana.
*pra vcs tb, Elisa e João, amigos amados, xarás de signo solar, cancerianos de raiz.
alice*
02/10/2012
vou pintando as unhas com cores estranhas
aprendendo a fazer receitas diferentes
dando assim um tipo de banda no tempo
nessa dor insuportável que estala os ossos
e ruge nos ouvidos
me acordando quando quase consegui dormir
e, de repente, juro que foram passos lá fora
desço correndo as escadas
tropeçando na barra da camisola de flanela
cheia de rainhas, bules e chapeleiros malucos
pra ver se foi vc que esqueceu que tinha ido embora
do nosso país das maravilhas.
onde foi mesmo que deixei aquela mulher
que eu era antes de vc sair?
* pra minha amiga que sabe quem é
quase milonga
02/10/2011
todas as vezes em que eu usar esse perfume hei de lembrar daquele vestido preto, e de você, numa ladeira da Lapa, me puxando pra vc, dizendo: “esse cheiro, esse cheiro, que cheiro é esse, menina?” (fazia tempo que eu não era mais menina). e depois um beijo, outro beijo, um cheiro.
Por dentro de mim, uma lembrança de buenos aires, de onde eu acabara de chegar, cheia de tango. Vc dançou comigo, sem saber, quase milonga: “me tira daqui, me leva, eu não sei dançar…”
E sabia. Sabia, sim.
Dancei
Ilusão de ótica
28/08/2011
Toda vez que você chegava perto de mim
Era um arrebol na minha frente
O vermelho de todos os crepúsculos
De todas as alvoradas
Nada se mantinha de pé no meu campo visual
De olhos obliterados
Eu me atirava
Como quem pula de uma janela, vendada
Como quem se joga de um trampolim
Numa piscina funda e dourada
Toda vez que você chegava perto de mim
Eu me sentia aberta
Como uma orquídea lilás
Como uma planta carnívora
Que espera, doce e molhada
Pela sua presa
Tudo se tornava quente à nossa volta
Derretíamos icebergs distantes
Provocávamos avalanches
As neves de todos os picos, melavam
Aguavam de tanto calor
Toda vez que você chegava perto de mim
Era a música de deus
Que me acordava
Trazendo-me de volta à vida
Preenchendo os meus silêncios com beleza
Os vizinhos acordavam com o nosso som
Acordávamos os dias, como os passarinhos
Chorávamos de rir
Mil faltas, mil excessos
E a nossa sensação de raridade
Por isso, naqueles dias
Depois que você saiu
Jurei que você voltava
Jurei que você voltava
that guy’s in love with u
16/04/2011
nos esbarramos, mais uma vez na vida, depois de tudo, agora na fila do banheiro.
vc está bêbado, eu estou bêbada. a música está alta. vc diz:
– “vc foi a mulher com quem tudo foi mais de verdade comigo, sem eu precisar mudar nada, e por isso eu acho que vc nem existe.”
sorrio, garbosa. acho que somos especiais, um quase-casal assim, de qualidade interestelar.
(nosso amigo bêbado diz, baixinho, abraçado a nós dois, na fila do banheiro: “vcs vão parar de tentar?” sorrisos, tapinhas, pô, qualé?)
Vc conclui: “mas se vc fosse a minha mulher, será que vc não seria igual a qq mulher?”
O benefício da dúvida, que bênção…
blow up (depois daquele sol)
27/03/2011
in a sentimental mood
16/02/2011
vc mostrando as coisas que eu nunca vi, eu mostrando as coisas que vc nunca viu. risadas. encontro mais que perfeito. na cozinha, mesa sempre posta, vinho, cerveja, queijo azul, pão sueco, tomatinho, azeite. a gente mudava de lugar e falava, falava, falava, falava. troca a música, ah, troca você. e de repente era perfeito não falar mais nada e eu cair dentro de vc, vc de mim. e depois a gente tomava sorvete de chocolate ou eu fazia ganache. e a gente fumava e bebia litros e mais litros de água, fosse naquele verão árido da despedida ou naquele inverno doce em que vc gostou de mim e disse: “Assim, me apaixono e fico”. “Fica, fica!”, eu desejava, fervorosa e muda, enqto a gente se abraçava e se beijava fundo e eu fechava os olhos com força, emanando: “Fica, fica”, e aí, antes que eu pudesse dizer qq coisa, vc me sedava, me enredava, me ganhava, me levava. Nada daquilo era meu, nem seu. Acho que foi por isso mesmo que eu nunca disse, em voz alta: “Fica!”.
E se tivesse dito? E se tivesse dito?
This is it
25/02/2010
“Cinemamente” falando, tô sempre atrasada. Só vi o filme do Michael Jackson, o This is it, ontem. Com atraso, me dei conta de tudo e chorei copiosamente, impressionada com a doçura, o profissionalismo, a humanidade, a dedicação, a humildade e a qualidade do artista que ele foi. O que me lembrou, claro, da cantora que manda o guru chegar antes, no teatro, pra limpar o ar que ela vai respirar. Ou da outra cantora que dá esporro ao vivo no seu esparro-diretor musical, a mesma que não se dirige pessoalmente a músicos e staff, mas qdo morrer quer virar um orixá, por ter uma vida espiritual imaculada. E haja novena e haja procissão pra lavar o pecado da soberba, um dos piores que conheço.
Mas o que me bateu mais fundo, o mais comovente, foi sentir o amor dele pelo que ele fazia. A felicidade dele em estar ali, dando vazão a toda capacidade, full power, cercado dos melhores do mundo em tudo. Profissionais competentes, dedicados e igualmente felizes por estarem ali no pico do cume do topo da cadeia da excelência. Oportunidade rara, que nós artistas perseguimos e muito raramente encontramos.
Chorei de peninha dele ao pensar que a morte roubou dele esse fazer. Pro artista, o fazer é soberano. Me senti próxima dele, porque sei o que é o prazer de cantar e estar no palco, mesmo nas minhas modestas condições. Temos algo em comum, afinal. Eu que não creio, pensei nele como uma espécie de anjo de todos os artistas, que por toda a eternidade deitará seu manto, cravejado de cristais swarovsky, sobre os palcos, como um espírito bom, só pra fazer circular e filtrar aquela energia tão peculiar e deliciosa. Ele deve estar em algum lugar, louco pra subir num palco e arrasar. Ah, deve…
Se ele quiser, no meu próximo show, humildemente me empresto pra ele matar as saudades do palco através de mim. Como um cavalo de santo. For the love, Maicon! L-O-V-E!
That’s it!
confessionário
23/03/2009
– e aí, amigo, tá melhor?
– ah, to bem melhor. Ontem acabei indo até pra cama com outra. Foi até bom, sabe? Divertida, a moça. Batemos um papo cabeça, rimos, ouvimos jazz, tomamos vinho, mas sem frescura. Mulher gostosa, maneira. Manda bem. Fiquei ali, curtindo, quase a noite toda na boa. De vez em quando é que, pô, vinha a cara da outra na minha frente, na hora H, lembrava das paradas da gente junto, sabe? Dava uma desconcentrada… Mas pensando bem, assim, tipo na noite toda, eu devo ter pensando nela o quê? Umas 18 vezes, no total… Pô, bem melhor. Eu tava pensando nela as 16 horas de vigília e sonhando as 8 do sono…

quem poderá, em vão, calar a voz do coração?
figura e fundo
27/11/2008
tenho pensado na passagem do tempo, na idade, na velhice. é a primeira vez na vida em que o mundo começa a me tratar com respeito, com deferências à minha experiência. Me sinto uma espécie de Tia Doca, uma senhora gorda, preta e boa de feijão, com voz de pastora, quando encontro uma cantora da jovem-guarda que vem bater cabeça pra mim. Me incomodo terrivelmente com isso e nao tenho o menor fair play com piadas sobre idade. Talvez eu me acostume quando isso deixar de ser novidade, com o tempo… Embora eu esteja melhor de aparência agora do que antes, a minha idade aparece e não vai desaparecer com uma boa noite de sono. Os sinais estão lá, estampados. Me lembro do dia em que me vi refletida na janela de um ônibus, à noite, eu do lado de dentro, a cidade escura por fora. Aquele vidro virou um espelho que me refletiu, iluminada pela luz fluorescente: it shows! pensei, está tudo lá. Todas as coisas que vivi. Não tem como a gente ludibriar a natureza. Se tivesse, a gente escolhia a quem amar e a quem não amar.
Minha mãe é uma mulher elegante, linda, cheirosa e vaidosa que, apesar de nunca ter feito uma plástica ou similar, sempre se preocupou em manter a beleza e a juventude em sua bela aparência. Sempre sorridente, simpática, carinhosa, é daquelas pessoas que iluminam o ambiente. Ela não está muito confortável com a passagem do tempo. Não estamos. Acho que a outra mulher da família, minha irmã, está maravilhosa e não me parece se incomodar como nós, somos mais fúteis e vazias do que ela. A outra, a afilhada, tem vinte e oito anos e tomou o primeiro toco da vida. Linda, jovem, vai se recuperar como todas nós. A outra, a sobrinha, ainda está encantada com tudo, vive pulando, falando alto, está em festa e com o colágeno e a elastina bombando. Como todo mundo que é feliz aos sete anos.
Na rua vi um homem de uns setenta anos, muito bonito. Altissimo, magro, ereto, olhos azuis, pele branca, cabelos brancos, barba bem feita, vestido de khaki e verde musgo. Chique. Cruzamos os olhares, profundamente. Vi, como num relâmpago do passado, o rosto dele quando era jovem: cabelos louros na infância, castanhos na vida adulta, bonito, atlético, esportivo. Pensei que a aparência e a idade são como um escafandro que vestimos progressivamente, que vai afastando nosso corpo daquilo que nunca muda. Como se a gente ficasse de dentro, pra sempre olhando o mundo com os mesmos olhos jovens, curiosos, ávidos, sensuais, desafiadores. Ele me olhou com o que nunca envelhece em nós. Eu retribui com o que nunca vai envelhecer em mim. Aprendi com a minha mãe que a nossa luz tem que servir para iluminar a vida. Sou uma mera aprendiz, mas chego lá…