Dizem que a retrospectiva da gente não interessa a ninguém. Verdade. Mas precisei fazer a contabilidade deste ano sui generis, e descobri que:

Comecei o ano fazendo o show Para viver um grande amor, com a Manu, mais de uma vez, e logo depois fiz o show Agora esse mundo é meu – canções de Fátima Guedes, na gloriosa Sala Nelson Pereira dos Santos, com meu parceiro Bilinho. Dei uma canja no show do Augusto Martins com o Pauleira, no CRMC.

Aí teve o chá de bebê da Yara, última vez que vi a galera reunida e, qdo a Paula foi pra maternidade, a Rosa ficou aqui esperando a irmã chegar, eu e o Moy online, ele no aeroporto de Roma, vindo da Rússia, a caminho do Brasil, o mundo já fechando pela Covid, de lá pra cá. Agora a Yara já tá quase andando.

Depois teve o sarau da Mellodi, o carnaval com a família Baron, em Terê. Na volta, foi aniversário da minha mãe, com a família toda. No dia 13 de março, eu e Delia gravamos o podcast Plugadas, com Elisa e Crikka. Depois, tomamos uns drinques. Aí, naquele 14 de março, rolou a derradeira noitada de vinho, com o Carlucho e a Mônica. Na volta pra casa, tirei fotos do amanhecer na praia cor de rosa, como se adivinhasse que estava me despedindo. Aí o mundo fechou.

Durante os quatro meses seguintes, não saí de casa nenhuma vez e não vi ninguém. Há quase dez meses, nunca estive presencialmente com alguém que não fosse minha mãe, minha irmã e minha sobrinha, que encontro uma vez por semana. Às vezes vejo os porteiros e os entregadores. Todos atrás de máscaras.

Sem sair de casa, lancei dois singles, pela Mills Records, com direito a entrar em playlists editoriais na Apple Music e no Spotify. Fui finalista do Festival Toca, com uma música minha. Fiz dois shows sem plateia, com o Arranco. Gravamos uns vídeos de quarentena e somos finalistas do Prêmio Profissionais da Música.


Fiz um curso de edição de vídeo e um curso de Música e negócios. Muitos workshops, cursos, palestras e aulas sobre voz e música, também estudei as plantas medicinais, o uso e manejo das ervas. Vi muitas séries e filmes. Participei de algumas lives e gravei vídeos cantando e tocando e fiz alguns episódios do meu programa Variações sobre o mesmo tema que, infelizmente, não consegui levar adiante por problemas com a internet.


Plantei um abacateiro num vaso. Promovi duas rifas e arrecadei uma bela grana pra ajudar causas importantes. Comi praticamente só comida orgânica, até pão, biscoito, doce, tudo sem glúten e feito por mim. Criei a série Comidas para o fim do mundo, e postei dezenas de fotos e receitas de comida de verdade, saudável, barata, bonita e gostosa. Tomei litros e mais litros de chás de ervas. E tb muito vinho. E cerveja. E gin. Também, sem a cachaça, ninguém segura esse rojão.

Desenhei, escrevi, costurei, compus, toquei, cantei, fiz bijuteria, sequei ervas, fiz tinturas, renovei e cuidei da casa e dos gatos.

Em 2020, dediquei cerca de mil horas às aulas de canto e suas preparações, para meus alunos maravilhosos, as pessoas que mais vi este ano, meus parceiros virtuais de todo dia, do Rio a Vancouver, com quem embarquei nessa arca louca, sem saber onde ou quando vamos aportar. Com essa quilometragem, já deve dar pra tirar algum tipo de brevê. Quando puder, quero conhecer pessoalmente os que só encontrei na tela.

Passei o Natal sozinha, de novo de quarentena porque, mesmo sem sair de casa, minha mãe pegou Covid. Embora ela tenha tido uma forma muito branda da doença, sem febre, nenhum sintoma além de cansaço, passamos umas duas semanas de muita tensão, esperando passar o perigo. Passou, ela está ótima. Comemoramos demais a passagem do ano novo, ao lado dela, todos testados, sem Covid.

Por fim, já estou quase falando gatês fluentemente, já que moro com dois gatos, Pepê e Tumtum e foi com eles que chorei minhas mágoas, conversei, dancei, dormi abraçadinha e tomei meus pileques solitários.

Deixo um agradecimento especial à minha homeopata, Cris, e ao André, meu analista, que me ajudaram a segurar essa onda sem pirar completamente. E aos amigos do além, que sempre dão aquela força.

Tenho aqui 20 músicas inéditas pra botar no mundo, um show virtual em fevereiro, com o Arranco, e uma gravação em março. Já tenho o que fazer em 2021. Dizem que a vacina vem aí, ainda em janeiro. Quem viver, verá! Axé!

dia 14 de março de 2020
essa foi a foto que tirei, voltando pra casa, depois daquele vinho, dia 14 de março de 2020

Hipódromo

21/07/2020

Eu tenho o estranho hábito de achar que, mesmo quando um lugar é derrubado, mesmo quando constróem uma cidade em cima de outra cidade, a história permanece ali, empilhada em dimensões várias. E assim, quando passo por um lugar que foi outro, quase vejo o empilhamento das imagens, como se fantasmas dançassem pra sempre, continuando a história que não podemos mais viver, em outras giras.

É assim que passo pela casa do meu avó, que agora é um prédio de esquadrias de alumínio e vidro fumê, e ainda vejo a gente lavando o quintal com tamancos de madeira, ao som da ladainha das sete-chagas-do-nosso-senhor-jesus-cristo ou coisa que o valha, cantada pela Noêmia, de pano na cabeça.

É assim que vou passar pelo Hipódromo, que fechou as portas esta semana, e onde vivi intensamente, tantas histórias, que nem consigo medir. Primeiro, com o namorado no fim dos anos 80. Depois com os amigos nos anos 90, toda noite, toda santa noite, antes ou depois do Baixo Leblon, antes ou depois de qualquer programa, durante cinco, dez anos? A vida se desenrolava alí, de pé, na esquina onde tudo acontecia. Quantas amizades fiz e cultivei ali, ainda nas mesas da calçada, amores achados e perdidos ali, namoros começados e terminados ali. A gente ria, falava, desabafava e bebia, como a gente bebia!

Quando o Hipódromo Up abriu, fiz um sem número de shows por lá, casa sempre cheia, temporadas inteiras. Assisti ao Arranco de Varsóvia, cantando todas as músicas de cor, sem imaginar que eu passaria esses felizes 19 anos como cantora do Arranco. Em meados dos 90, meu ex foi trabalhar na casa, transformando aquilo tudo no nosso quintal diário até a alvorada dos anos 2000, quando a casa de shows fechou e o casamento acabou. Ali começou a dispersão, nossa geração não mais tão noturna, novas gerações se empilhando e vivendo ali o que a gente viveu. A felicidade em pé na esquina, de copo na mão. Já não era mais um lugar pra ir sozinha e encontrar todo mundo. O bar virou um velho amigo, que a gente volta pra visitar e se reconhecer, de vez em quando.

Quando eu passar por lá, verei ainda a dança dos garcons no salão, suas bandejas repletas de chope e pizza. E sempre vou sorrir lembrando da amizade que só quem é boêmio conhece, dos meus companheiros de tantas milhares de noites boas e ruins: Boi (que eu chamo de João), Sorriso, Sassá, Lacerda, Edenilson. A intimidade na medida certa, que saca o dia em que a gente quer só beber sossegada e quando a gente quer papo. E o Zé, gerente sócio da casa, que me recebia sempre como uma rainha. Em 2007, ele até abriu o já fechado Hipódromo Up pra eu lançar meu álbum O amor de uns tempos pra cá. Meu canto do cisne naquele palco. Depois, vieram outros bares, outros bairros, outros palcos, outros amigos, outros amores. Nunca mais tive um bar pra chamar de meu daquele jeito. Não há mais bares daquele jeito.

Naquela esquina do BG, no empilhamento espectral dos dias vividos, vou ter eternamente 30 anos de idade, cabelos vermelhos, olhos muito pintados, usando perfume Minotaure, de saltos enormes, copo na mão, toda vestida de preto.

(foto tirada no banheiro do Hipódromo, durante uma temporada de sucesso do meu show Black Museu Brasileiro)

Quando minha mãe era criança, ela tinha um livro com esse nome. Um dia, ela levou o livro pra mostrar pra freira da escola onde ela estudava. A freira ficou encantada e pediu o livro emprestado. Nunca devolveu, alegando que o livro tinha sumido. Minha mãe, criança, ficou p da vida sem seu livro. Até que, um dia, na escola, entra numa sala e dá de cara com o livro numa estante. Sem pestanejar, rouba de volta seu livro e ganha 100 anos de perdão.

Esse livro ficou na família e foi parar na minha infância, também. Era um tempo em que crianças brincavam com outras crianças, ao ar livre. Na calçada em frente de casa, na garagem do prédio, onde houvesse espaço. Saíamos em bando, de bicicleta, pra dar voltas no quarteirão. Era proibido atravessar a rua. Mas podia, às vezes, parar na carrocinha da esquina da Montenegro com a Sadock de Sá, e tomar um sorvete.

Quando chovia, a gente usava esse livro e inventava um monte de coisas pra fazer dentro de casa. Eu tinha miçanga pra fazer bijuteria, linha pra bordar, cavalete pra pintar quadros, mala de tinta à óleo, lápis aquarelável, muitos brinquedos e recursos. E mãe em casa. Era bom. Até hoje tenho carinho por ficar em casa em dias chuvosos. De quarentena, tento agora descobrir que brinquedos vão me entreter enquanto durar essa quase chuva. Trabalhar online, fazer um canal de receitas, botar a leitura em dia, arrumar a casa, estudar, compor.

Aqui encastelada, presa na gaiola surrealista dessa distopia sem fim, vivendo o caos da incerteza, sem saber se vamos todos adoecer e morrer, se vamos ficar sem água potável, se o país vai explodir sob as patas desse cavaleiro apocalíptico e destruidor de tudo, lembro do livro. Começo a procurar e lembro que ele está em Teresópolis, naquele cantinho subjetivo que guarda os últimos raios da minha infância.

Estou bem guardada onde estou. Penso em quem só come se defender a grana do dia, e vai passar fome de verdade. Biscateiros, camelôs, entregadores de tudo. E músicos, artistas, todos os autônomos. E aqueles que simplesmente não têm o que comer, nem sabonete pra lavar as mãos, nem água. Morro de pena das crianças que moram em micro espaços, de onde não poderão sair pra brincar, das pessoas que moram em um cômodo pra oito, dez pessoas, todos juntos, velhos, novos, doentes, sãos. Como conter um vírus no epicentro da desumanidade, onde pessoas nasceram com a marca da invisibilidade ancestral? Gerações e gerações de gente que o mundo não vê, não leva em conta, não gosta.

Penso em casais que vão adorar a re-lua-de-mel, em pais que vão ter que inventar uma rotina com os filhos, que só encontravam nos fins de semana. Vai ter gente que vai aprender a cozinhar, outros vão aprender a brincar com uma criança, outros vão ler livros e outros vão descansar do vai e vem da vida. Logo depois, lembro das famílias que moram juntas porque não têm como se separar. Sem grana pra mudar de casa, mulheres apanham de marido, crianças sofrem abuso, casais que se odeiam e compartilham o mesmo espaço por falta de opção. Todos trancafiados nesse reality show de mau gosto, que vai testar a humanidade e os limites de sanidade e civilidade. Não vai ser fácil.

Mas por que é tão desesperadora essa quarentena? Só porque é ruim ficar em casa? Não. Porque a gente vive pra trabalhar, pra pagar boleto. E isso, a gente não tá podendo fazer agora. Não do jeito que era. O que está em casa, o que está do lado de dentro, nossa intimidade e nosso lar, a gente deixou em segundo plano há muito tempo. Quem sabe a gente, por falta de opção, lembra de respirar melhor, junto com o planeta, sem tanto CO2? Quem sabe a gente surfa nessa onda, como os golfinhos e cisnes que voltaram aos canais de Veneza, e se refresca por dentro, como os patos que agora param pra beber água numa Fontana di Trevi vazia? E o Rio de Janeiro, o que vai acontecer quando estivermos todos em casa?

PS: Encontrei meu brinquedo para dias de chuva, to aqui escrevendo, como nos velhos tempos.

a infância da minha mãe

domínio público

07/11/2019

Sábado à noite. Festa. Pessoas vão chegando, se falando, pegando suas bebidas, encontrando suas cias e seus lugares pra ficar. A noite está começando, é fim de semana. A moça encosta ao meu lado, em frente ao balcão das bebidas e suspira: “Aff, vou ter que beber esse carboidrato”. Pega uma cerveja e sai, me deixando atônita e quase culpada por não estar reduzindo o ato de tomar uma cerveja, com amigos, numa festa, a “beber carboidrato”.

Pouco tempo depois escuto outra moça comentando sobre a empadinha: “ai, que delícia, amanhã vou ter que ficar o dobro de tempo na esteira”, ao que a mulher ao lado morre de rir e concorda, balançando a cabeça: “ah, a gente tem que correr atrás, é isso aí, amiga”. A moça do carboidrato líquido, encosta ao lado de alguém e justifica mais uma vez a sua transgressão, ouço ao longe: “eu nem ia beber hoje, esse carboidrato todo é foda, pão líquido, né?” Seu interlocutor faz cara de “foda-se” e manda pra dentro o resto da long neck, de uma vez, dando meia-volta e deixando a moça falando sozinha.

Há momentos de dieta, de doença, de detox, e de tratamentos na vida. Eu sei. Eu já fiz milhares disso tudo. Já fiquei sem beber e sem comer nada por milhares de dias da minha vida. Já optei por não sair de casa, qdo a restrição me pareceu impossível de lidar e já fui pra festa beber água sem comer nada. Já odiei ter saído e voltei correndo pra casa, no humor mais suíno da terra, e já fiquei de boas, fumando um e bebendo água, sem me sentir mal por não estar compartilhando dos comes e bebes. Cada um sabe de si, do seu momento, da sua dieta. Não estou falando disso.

Estou falando de um comportamento especialmente comum às mulheres, que estão sempre se desculpando, publicamente, por não estarem no peso que deveriam, por estarem comendo em vez de estarem passando fome pra chegar no tal “peso ideal”. Elas têm tanta certeza de que a aparência é a coisa que mais importa, de domínio público, que entendem que o mundo está esperando uma satisfação sobre a sua conduta alimentar. E se desculpam, e explicam. E aceitam um pedaço de pizza e confessam a culpa. E acham que esse assunto interessa às pessoas que estão na mesa do bar com elas, na festa com elas, tentando ter um minuto de descompressão da vida bandida.

O corpo feminino é historicamente tratado como posse alheia e as mulheres são as primeiras a permitirem que assim seja. Estão sempre comentando a aparência umas das outras, como se isso fosse a coisa mais importante. Toda gorda escuta: “vc emagreceu?”, mesmo sem ter emagrecido, numa mistura de sugestão e de esperança da outra, que quer testemunhar o emagrecimento obrigatório. Toda gorda deve querer emagrecer. Não tem escolha. Se não ficar magra não casa, se não emagrecer não pode entrar na igreja de noiva, se não perder peso perde o marido, se engordar é safada, gulosa, sapatão, suvaco cabeludo, mulher macho. “estamos preocupados com a sua saúde”, diz a hipócrita bebendo coca zero e comendo salsicha.

Os movimentos anti-gordofobia, as tentativas de normalizar o plus size, emplacam a passos de cágado, mesmo nesta sociedade globalmente acima do peso. As mulheres gordas estão tentando existir fora do holofote do ridículo, querem pleitear o direito à beleza. Mas a sociedade continua dizendo que “ela tem um rosto lindo, que pena” e fingindo que aceita suas barrigas expostas pelas blusinhas cropped. Pegue os últimos 20 trabalhos de um fotógrafo de casamento e veja se tem alguma noiva gorda. Depois me conta.

Enquanto as próprias mulheres se desculparem por não estarem com o corpo ideal, enquanto julgarem outras mulheres pela aparência, enquanto comentarem a aparência de outras mulheres como avaliação, como uma banca de exame, nada disso vai mudar. Como o machismo, que precisa mudar na estrutura, entre os homens, a descoisificação da mulher precisa começar pelo olhar de mulher pra mulher. Até lá, seremos uma sociedade de mulheres acima do peso se sentindo sempre em dívida, erradas, pecadoras, safadas e doentes.

E se sua amiga estiver gorda e bebendo e comendo na festa, apenas brinde a vida com ela, resista à tentação de ser educativa e julgadora. Vamos combinar que caloria se conta em casa e cada uma conta as suas.

A vida anda falando de morte. A todo momento a morte e seus parentes batem na minha porta, me acordam de madrugada, tiram o sossego das pessoas que amo e me colocam aquela velha pergunta na boca: fico saudável pra morrer tarde ou chuto o balde pra acabar logo com isso?

Eu não sou uma otimista. Nunca fui. Quando eu era mais nova eu tinha muita raiva de ter que me virar pra viver, pq eu nunca tinha pedido pra nascer e, qdo dei por mim, tinha mil boletos pra pagar e zero interesse em cumprir o script da vida. Ainda não tenho, preciso confessar, mas tenho sorte e pessoas que amo e me amam. Não tenho um deus pra me consolar, tenho afilhadas e sobrinha, mas não tenho filhos, não deixo descendência. Não tenho moral que me faça achar que a vida é uma dádiva. A vida se perpetua, banal como planta que nasce na pedra, sem chance, sem solo, sem luz. Eu vivo, e o demônio insano do Bolsonaro e sua corja miliciana dos infernos vivem, não há qualidade moral na vida, não há virtude.

A arte é um lenitivo, mas não cura. Pq dentro de mim, num dia de destruição como o de hoje, em que a fumaça das queimadas do “dia do fogo” dos ruralistas entrou por dentro de mim e a bala do governador assassino atingiu o meu peito, minhas forças são todas pra chorar a onça pintada carbonizada na beira da estrada, os índios chacinados, os jovens pretos assassinados a granel, a constituição violentada, a justiça mais injusta e um país em ruínas, pautado pela exploração da ignorância e pelas falcatruas.

Na história eu acredito. E é a minha mais secreta vingança pensar que, se sobrar Brasil, em algum momento do futuro, essa gente vai ser reconhecida pelo que é: exterminadores violentos, psicopatas, desumanos, carniceiros com problemas sexuais e fome de poder. Posso não estar mais aqui pra ver, mas carrego a esperança comigo. Nada dura pra sempre, até Hitler caiu. Assim como Auschwitz está lá, pra todo mundo ver o que fizeram no passado, o rastro de destruição dessa gente vai contar o que elas fizeram e o juízo final, não o remoto, mas o dos homens, o da história, há de nos vingar e fazer justiça.

Sepultemos os mortos. Mas cuidemos dos vivos.

Aiaábô

22/07/2019

Minha tia, deitada na cama, geme. Não quer mais saber de nada.

Quer comer alguma coisa bem gostosa, tia?

Não.

Quer um suquinho?

Não (com o dedo indicador esticado, infantil, um nãozinho lateral, olhos fechados).

Laranja. Lembrei da laranja Seleta enorme que você comprava na feira e sempre tinha na sua casa. Tem laranja, tia?

Não.

Geme. As dores de esquecer, as dores de morrer daqui a pouco, as dores de ter tido tudo e tudo não ser mais nada nessa hora. Dores. Deito com ela na cama, colo meu corpo no dela, seguro sua mão e morro de chorar, sem ela ver. De repente, ela aperta minha mão, me acaricia e ri, aninha a cabeça no travesseiro, sabe que eu to chorando. Mas ficamos ali, eu entrelaçada nas mãos dela, testa com testa, pensando no porquê de ninguém nunca me mandar cultuar Nanã, minha mãe, essa morte à espreita, esse lamaçal original, esse encontro, esse retorno.

Minha tia geme aiaiaiaiaia e eu me lembro de como meu avô, pai dela, gemia, deitado na sua cama com mosquiteiro de voal, na Rua Montenegro, em Ipanema, e eu nem era mais criança. Quando sofria, meu avô deitava com as mãos entrelaçadas do mortos e gemia, em árabe: “Aiáboô, aiádeê”.

Minha tia geme, sussurra “não tenho nada pra fazer”, e suspira. Rindo, gemo pra ela, citando o vovô: “Aiábô, aiádê”. Ela ri, repete, ri, adora a lembrança e fala: “árabe!”, e continua rindo devagar consigo mesma e gemendo “aiábô”. Esquece. Pára. Some. Volta.

Vamo levantar, tia?

Não.

Cansada, se vira na cama. Geme. Deitada, de mãos dadas com ela, brinco no seu ouvido: “aiábô”.

Ela, séria, declara: “Aiábô… Meu pai, meu avô, meu bisavô”.

Aiábô, minha tia, meu avô, meu bisavô, meu triavô.

Desejo que seja leve, que seja boa, que seja suave essa viagem que a leva.

Aiábô, minha mãe, meu pai, minha irmã, minha sobrinha, meu cunhado.

Aiábô, como dói essa porra de vida.

a semana começou com a notícia do suicídio do filho de uma amiga. 20 anos recém feitos. A depressão insuspeita reinava a apenas dois dedos abaixo da superfície, que mostrava um lindo menino calmo e silencioso. Na carta de despedida, revela que já tinha tentado se matar, sem sucesso, que era tão solitário e triste que não queria mais viver. Desta vez conseguiu. A mãe trabalhava incansavelmente para melhorar a vida dele.

Dois dias depois, recebo a notícia de que o filho de outra amiga, 18 anos, entrou em surto e ameaçou matar a mãe e depois se matar. Foi internado e medicado, lobotomizado pela medicação que vai calar seu desespero. Sabemos que está desmotivado para a vida, porque um rapaz pobre não tem sonho, nem querer, neste país de dinossauros brancos, ricos e famintos. Não consegue estudar por falta de recursos. Não consegue trabalhar porque não estudou. Quer trabalhar, comprar roupa, ir ao baile, ter uma bicicleta, namorar. Mas não consegue nem existir. A mãe trabalha desde os 12 anos, e encara quatro horas de transporte para ir trabalhar, todos os dias. O pai nunca está em casa, trabalha o tempo todo.

Meus amigos, mesmo com um filho só, vivem exaustos, mortos de cansaço e pingando de sono, porque acordam de madrugada para levar filhos na escola, e depois correm pro trabalho, pra tantos trampos quantos consigam administrar, para conseguir pagar boletos e mais boletos e não frustrar as demandas dos filhos: academia, patins, terapia, violão. Tablet, Disney, tênis de marca, celular. Nunca batem a meta. Trabalham demais e dormem de menos e raramente se divertem ou fazem o que gostam, porque ter um filho se assemelha a ter que alimentar um exército. Filhos querem muito, têm muito, querem mais. E preciso pagar escolas caríssimas, dar o melhor, fazer o máximo. E a vida vai passando ligeira, lá longe. Tempus fugit.

Todos estão insatisfeitos, infelizes e frustrados, pais e filhos. Mal se comunicam. Os filhos que não têm nada, se matam ou querem morrer, com raiva dos pais. Os que têm tudo, acham natural o esforço alheio para lhes dar conforto. Querem outro celular o mais rápido possível. Mal conhecem a cidade onde moram, porque nunca levantam os olhos das telas. Estão hipnotizados e abduzidos pela vitrine de consumo que lhes apresenta o mundo. Completamente despreparados para a vida real, para a “pelada de calçada”. Os pais correm, é preciso correr. “Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, é tarde, é tarde”, disse o coelho da Alice, indo para lugar nenhum.

Num domingo em Paris, há muitos e muitos anos, vi um homem negro subir num caixote e fazer um discurso em frente ao Beaubourg, coisa comum. Ele contava que seu pai fora nascido e criado num país africano colonizado pela França. Contou que, na Segunda guerra, receberam visita de um general do exército convidando os adultos da família a lutarem “como irmãos” em defesa da França. E assim partiu seu pai para a morte na guerra.
Muitos anos depois, esse homem, morador de Paris havia mais de 30 anos, com filhos nascidos na França e família e carreira assentados por lá, estava sendo ameaçado de ter que voltar pra África, país que nunca fora seu, pra uma casa que nem tinha mais, pra um berço familiar esvaziado e mutilado pela guerra, por medidas políticas da direita que empunhava a bandeira da “França para os franceses”. Me falta cultura política e memória, mas nunca me esqueci do sentimento de revolta que cresceu em mim, através da dor do homem que gritava: “Quando foi pra lutarmos e morrermos na guerra, éramos franceses. Achei que a França fosse meu país, que fôssemos irmãos. Agora estou incomodando, minha família está ocupando espaço dos franceses e não sirvo mais pra nada. Querem me despejar como a um invasor”.
Jamais me esqueci dessa cena. A essa altura o racismo me doía na carne branca e privilegiada de Ipanema. Nasci com um senso de justiça muito grave, veio comigo. Amei as pretas que cuidaram de mim e da minha família, e percebi logo que nunca sentei ao lado de um negro na escola. Fui socialmente excluída da convivência com o mundo real, meu mundo era branco, de classe média ipanemense, com pretos subalternos. Quando criança, morando em Londres, senti o mesmo desconforto vendo as meninas indianas e paquistanesas da escola, as “quase-inglesas”, sendo discriminadas pelas “verdadeiras inglesas” louras, de olhos azuis. Mas, depois de ver certas coisas, se demos a sorte de crescer com senso e  tento, temos a obrigação de reeducar nosso olhar, desconstruir velhas crenças e dar um passo adiante. E de novo e de novo pra sempre. Muito novinha, amei e namorei um cara negro, e assisti de perto essa dor doer. Senti, na pele do meu amor, o que era não ser bem vindo, ser olhado de cima em baixo, ser rejeitado pela família branca da namorada. Éramos alvo de olhares na rua, nos lugares onde íamos. Aquilo doeu bem fundo em mim, fortaleceu o meu amor, me amadureceu.
Morando em Paris, no fim dos anos 80, encontrei uma cidade miscigenada, com negros em lugares sociais diferentes do que eu via no Rio. Motivada pelo calor do movimento SOS Racisme, carreguei por muitos anos o broche com a mãozinha do movimento Touche pas à mon pote, (mais ou menos “Não toque no meu broder”), como uma bandeirinha pessoal antiracista, meu distintivo. “Pote” era como chamavam os amigos africanos, especialmente aqueles do chamado Magreb, norte da África: Argélia, Marrocos, Tunísia, Líbia… Inesquecível o show na Praça da Bastilha, reunindo estrelas do mundo árabe, de países da África e nosso Gilberto Gil, que tem até canção sobre o movimento. De certa forma, norteei minha vida musical por esses acontecimentos e quis gritar do meu jeito contra o racismo, exaltando a cultura e a música negra.
Hoje, fim da Copa do mundo de 2018, as redes sociais estão cheias de comentários sobre a seleção francesa que venceu a Copa, com jogadores negros de origem não-francesa. Ou seriam franceses, lutando pelo direito de serem reconhecidos como franceses, como nosso amigo do caixote? Essa história toda veio à tona, misturando tudo. Me vi em Paris, com 21 anos, caminhando pelo Quartier Latin de camisa do Brasil, de pileque, depois de sermos defenestrados da Copa de 86, pela França. Lugar errado na hora errada. Me lembrei do meu amado Jardins de Luxembourg, onde escrevi um poema sobre as lindas crianças multicor de Paris, fenômeno novo pros meus olhos cariocas.
Espero que hoje estejamos vivendo um momento crítico, daqueles necessários e radicais, que anunciam uma guinada, uma volta no parafuso. I have a dream, que uma vitória como a de hoje, na Copa de 2018, conquistada para a França por jogadores negros, franceses, refugiados ou despatriados, sirva pra despertar o debate que vai amaciar os corações duros de um mundo que não quer mais se misturar.

Feliz Natal!

24/12/2017

Amigo, aí vai uma pequena playlist de Christmas jazz, cantada por mim, para vc ouvir com a sua família e ter uma noite feliz! Tudo de bom pra vc!

salto triplo*

22/11/2017

*escrevi este texto inspirada no show de mesmo nome, que faço com Elisa Queirós e Cacala Carvalho, só com nossas composições.

 

TENHO ASAS, POSSO MUITO BEM VOAR

CRUZAR MIL CORDILHEIRAS E DEIXAR

UMA CORRENTE QUENTE ME LEVAR,

PLANAR SOBRE AS CIDADES, FLUTUAR

DAQUI DE CIMA APRECIO A VISTA E PULO

BRAÇOS ABERTOS PARA A IMENSIDÃO DE TUDO

 

TENHO TERRAS A CONQUISTAR,

SOU UMA AMAZONA CAVALGANDO EM PELO,

DONA DE UM DESERTO DISTANTE E PERIGOSO,

CHEIO DE OÁSIS PARA DESBRAVAR.

PROVOCO TERREMOTOS E ABRO FENDAS

É DO MEU EPICENTRO QUE A VIDA BROTA

 

TENHO SETE MARES A SINGRAR

MERGULHO EM APNÉIA,

PESCANDO PÉROLAS EM CORAIS ABISSAIS,

RAINHA DAS ÁGUAS, SENHORA DAS MARÉS,

SEREIA QUE ENCANTA MARUJOS DO AMOR,

DESÁGUO EM SETE QUEDAS, SALTOS TRIPLOS

E SOU IARA, A DONA DA CACHOEIRA

 

EU TENHO A CENTELHA DO FOGO E ESPALHO A BRASA

TROVEJO, RELAMPEIO E CORTO O CÉU COM MEU FACHO DE LUZ

EU SOU AQUELA QUE CONDENSA E CHOVE,

NASCI EXUBERANTE DO LÓTUS, DA LAMA DOS LODAÇAIS

FEITO UM SOL, RAIO, ME PONHO, RECOMPONHO

E CHEIA DE ALVOROÇO, ALVOREÇO E SOLO

 

AGRADEÇO PELA GRAÇA ALCANÇADA

DAQUI DE ONDE VEJO É TUDO PLENITUDE

TODO PODER E GLÓRIA ME PERTENCEM

CAIO DENTRO DO MUNDO

COM UM SONHO NA CABEÇA, UM SORRISO NA BOCA

E ESSA CORAGEM NA MÃO

 

machismo

07/06/2017

O cara namorava uma gordinha, como eu, que ele julgava “mais largada” do que eu. Como trabalhássemos juntos, de vez em quando, pra desestabilizar a namorada, sugeria que tinha rolado “um lance” entre mim e ele. Lance que nunca rolou. A mulher passou anos achando que eu tinha sido a safada que ficou com o namorado dela, nas barbas dela. E nunca fiquei. Soube disso porque ela me contou.

Esse cara é uó, sempre dois degraus afundado na lama, sempre parece sujo, virado, doidão, desagradável. Nenhuma mulher do mundo merece um homem como ele. Como vive no meio de músicos, tradicionalmente a classe mais machista que conheci na vida, ninguém se importa de ele ser um escroto, é um queridão da galera. Um escroto.

Teve filho com uma, e largou pra lá. Teve outro filho. Que ele vai largar assim que a criança começar a chorar na cabeça dele. Paquerar por hábito é a lei desse tipo de homem. Sempre uma palavrinha safadinha, uma insinuaçãozinha, como se ele estivesse sempre pronto para um sexo selvagem e inesquecível que vc nunca experimentou na vida.

Outro dia entrei sozinha num bar. Lá estava ele, o seboso. Sentei em outra mesa. Ele virou pra falar comigo, sorrindo, como se eu talvez não tivesse visto que ele estava lá. Mas eu tinha visto. E não falei com ele porque ele é um escroto.

A verdade é que tinha falado com ele outras vezes, mas me dei conta do meu machismo, da minha própria falta de decência e de senso de coletividade e respeito por mim mesma e pelas outras mulheres, e decidi parar de ser legal com ele e com todos os outros desse tipinho. O machismo que a gente engole, sublima, justifica, multiplica e apoia é o mais nocivo, porque credencia o cara a continuar, com aval de mulher. To de olho em mim mesma, a cada minuto, tentando aprender a ser uma mulher melhor.

Sonho meu

04/04/2017

Minha breve carreira de cantora que andava com o violão debaixo do braço me botou nos primeiros palcos da noite carioca, fosse cobrindo o intervalo do músico titular, ou esperando um convite pra canja. Eu tinha uns 16/17 anos. As bancas vendiam uma revistinha semanal, Vigu, que vinha com as letras, as cifras e os desenhos do bracinho do violão, pra ensinar as “posições” (que outros poetas chamam de “acordes”). Foi assim que eu aprendi a me virar, tocando violão – perdoem os violonistas -, sem ter a menor ideia do que estava realmente fazendo. Ia copiando, tocando e cantando. Queria estar ali, queria cantar. Cá estou.Foi assim que reuni o repertório que gostava, que incluía, obrigatoriamente, As rosas não falam, Andança, Sonho meu, Pétala, Azul da cor do mar, Sampa, Vira Virou, Amigo é pra essas coisas…

Quis o meu violão torto, e a minha voz obstinada, que eu deixasse as cordas dedilhadas pra quem sabia, e ficasse tocando só as cordas vocais. De lá pra cá, pisquei o olho e, quando percebi, 29 anos se passaram. Rios, mares, tsunamis, tempestades, trombas d’água, degelo das geleiras, tudo que é tipo de água passou debaixo dessa ponte. Passei por tudo, hora impávido colosso, hora achando que a ponte ia cair, umas vezes segurando na mão de alguém que me socorreu na hora H e outras sendo, eu mesma, meu bote salva vidas. Bebo da fonte dessa vida, fartamente.

Entre sonhos mortos e feridos, realizei alguns. Mas o mais incrível foi realizar o que não ousava  sonhar quando tocava violão na hora do recreio, no pátio do Bahiense da Gávea: Tenho estado em mil palcos, ao lado de mil mestres. Cantei Sonho meu, com a Dona Ivone; Andança, com o Danilo Caymmi no Réveillon do Farol da Barra; As rosas não falam, com a Beth Carvalho; Não deixe o samba morrer, com a Alcione; Verdade Chinesa, com o Emilio Santiago; Canta canta, minha gente, com o Martinho da Vila; Azul da Cor do mar, com Tim Maia; Olhos coloridos, com a Sandra de Sá; Flor de ir embora, com a Fatima Guedes…

Esta semana, o meu Arranco de Varsóvia vai fazer um show com o MPB4, em homenagem aos nossos 20 anos de carreira. De grupo vocal pra grupo vocal. Meu coração pulou e meus olhos molharam no primeiro “iá iê, iáiê onionan, onaiê” de Porto, música do Dori que embalou tantos momentos secretos da minha vida, na voz desses caras que ouvi tanto em disco e em shows. E quando juntamos nossas vozes às deles, tive aquela sensação de borboletas em bando, de fogos de artifício, de festa!

Não tenho dinheiro, não tenho casa, não tenho nada. Mas se cair dura amanhã, valeu cada golinho desse aguaceiro!

Enquanto isso, lá vou eu realizando sonhos e inventando outros, porque, né? Tamos aí pra isso mesmo.

onze horas

01/04/2017

queria uma planta que desse flor e aguentasse a quantidade de sol que bate aqui em casa. Muuuuito sol. Minha mãe me deu um vaso de Onze horas, que amou o parapeito da janela e, nesse verão tórrido que passou, deu flores todos os dias debaixo do sol escorchante, sem nenhum sinal de cansaço. Ao contrário, ficou plena, linda, farta.

A Onze horas abre as flores no sol à pino e vai fechando as flores com o cair do sol. Mesmo em pleno verão, estão fechadinhas lá pelas três, quatro da tarde.

Acontece que eu sou uma flor noturna. Durmo quando amanhece. De um tempo pra cá, to vendo as flores da Onze horas abertas até cada vez mais tarde. Hoje elas estavam abertas, ainda, às 19h30. E nem é mais verão…

Se não for nada disso, não me desiluda, já to tão desiludida.. Quero acreditar que as flores e eu sintonizamos nossos relógios. E que aqui em casa é possível florir a qualquer hora

sonho meu

17/10/2016

Senhores, me abracem.
Todo santo dia eu tomo um litro de chá. Uso o mesmo bule de vidro, todos os dias, há anos.
Esta noite sonhei que o bule quebrava e eu chorava muito, dizendo: puxa, esse é o utensílio de cozinha que mais uso e amo.
Acordei. Botei água pra ferver, como faço todo bloody santo fucking dia há pelo menos oito anos. Fiz tudo igual. Quando a água bateu no bule, ouvi aquele som de vidro trincando,

plic
e imediatamente toda a água fervendo escorreu pelo fundo solto do bule e caiu pela bancada e molhou o chão da cozinha.
nem chorei. já tinha chorado no sonho.

fim.


bule

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

morada eterna

16/08/2016

A única certeza da vida é a morte. Ao pó retornaremos. Ainda assim, todo mundo se espanta com ela. Já tenho idade pra ter entendido que a morte tem que acontecer de qq jeito. E acontece. Nem sempre limpinha e bonita, nem sempre à altura do merecimento do morto, para o bem e para o mal. As pessoas têm um sonho cristão, de uma morte que transpareça a qualidade de quem morre: “…era um santo! morreu dormindo…”. No fundo, sempre fica uma esperança de ascenção, quiçá ressurreição ou de um reconhecimento premiado, agora e na hora de nossa morte, amém.  Se bem que,  uma morte digna, a esta altura do mundo, está muito mais ligada a questões sociais que espirituais. Viver e morrer ainda é melhor para os ricos que para os pobres.

A real é que a morte tem que ocorrer, do jeito que for. Uns morrem como uma luz que se apaga, outros em metáforas menos poéticas. No final, morte é morte. Acabou, fim. A energia retorna à matriz e volta a circular por aí. Pra mim, isso é que é vida após a morte. Com o passar do tempo, vemos nossas pessoas desaparecendo em progressão geométrica, mas nem todas na razão da idade. Muitas, na razão da vida que levaram, ou das surpresas do inesperado. Não tem lógica morrer uma menina de 12, com tudo pela frente e um velhinho com alzheimer vegetar pra sempre. Esquece a lógica. Entendi que o negócio é escolher como a gente vai viver, morrer é o imponderável. E deve ser bom, pq ninguém nunca voltou pra reclamar, nem pra matar saudades.

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mundo invertido

25/07/2016

descobriram a cura não-cirúrgica pra articulações defeituosas e o fim da dor crônica. Inventaram o fim da menopausa e da devastação que ela provoca.

Hoje recebi um email me chamando pra um projeto maneiro, no Brasil, com cachê digno.

Encontrei uma boa parceria de trabalho que me apóia, investe no meu trabalho, me promove, marca shows pra mim, pensa em projetos, faz a produção e a divulgação.

Fui convidada pra fazer uns shows na Europa, com passagem e estadia e até cachê.

Os festivais internacionais pra onde mandei material responderam minhas mensagens e fui aprovada pra participar de uns.

Consegui entrar no edital pra gravar meu DVD e tenho trabalho no ano que vem, e meus parceiros vão ganhar pra trabalhar dignamente.

Este ano, vou gravar meus projetos e vou poder pagar um profissional para resolver pra mim o que não consigo resolver sozinha.

Ganho o suficiente para me manter e investir na minha carreira e na minha vida e pra fazer planos.

Tenho direito a férias.

Tenho direito a sonhos.

pink and blue

pare. pense. Quantas vezes na sua vida um amigo levou a nova namorada pra te apresentar e ela era gordinha? Olhe em volta. Quantos homens estão andando na rua de mãos dadas com uma gordinha? Quantas vezes você foi a um casamento em que a noiva era gorda? Quantos meninos magros você já viu namorando uma menina gorda?

Será que o fato de uma mulher estar acima do peso faz com que ela não seja amável? Olhando em volta, os homens gordinhos parecem socialmente merecedores de amor, quase tanto quanto os não-gordos. Mas as mulheres, não. Às gordas cabe uma vida solitária e secreta. Por detrás das portas fechadas, longe dos olhares julgadores dessa sociedade hipócrita que vive de e para a aparência, há homens comuns amando gordinhas com quem nunca sairão de mãos dadas na rua. Pq a qq momento vai ter que rolar o teste da praia. O que vão dizer se virem o cara com uma gorda pela mão? Que ele não é homem para ganhar uma mulher do padrão gata do momento? Que a masculinidade dele não é suficiente e por isso ele ficou com a carne de segunda? Como assumir o tesão na gordinha, o prazer que ela pode dar, como qualquer mulher, como explicar que tesão e amor não têm regra formal e que pessoas são sistemas complexos não-definíveis pela forma do corpo. Como é tola a sociedade que escolhe seus afetos pela capa.

Fui gordinha a vida toda. Passei por tudo isso. O tesão entre quatro paredes, o desejo secreto, os relacionamentos de uso interno, a paixão recolhida, cheia de poréns. Encarar a realidade pela primeira vez não é fácil, dá uma sensação terrível de injustiça, pq tudo pode neste mundo, qualquer crime, qualquer sacanagem. Pode cortar um pedaço do estômago, pode colocar um pedaço de silicone dentro da pele, pode injetar uma substância tóxica pra ficar jovem, pode tudo, menos estar acima do peso.

Triste ver garotas gordas em relacionamentos abusivos de todo tipo. Aceitando qualquer coisa em troca do direito de ter alguém pra chamar de seu, como todas as outras. E quantas não-lésbicas gordinhas ficando com outras mulheres gordas? A sociedade desmulheriza tanto a mulher gorda, que ela vai procurar acolhimento afetivo onde não será discriminada, entre iguais.

A gordofobia está na ordem do dia junto com tantas outras fobias socias que são tentativas de normatizar o mundo à semelhança de um ideal de mundo que não há. Fobias de negação da realidade humana tal como ela é: uma grande feira livre de vida, de todas as formas e formatos e tamanhos e cores e sabores e jeitos e caras. A julgar pela lista de lutas sociais do momento, o mundo ideal dos hipócritas seria masculino, rico, hetero, branco, magro, temente a deus e careta. Um grande exército de pessoas idênticas, marchando em direção ao sucesso e à ascenção social seletiva, deixando de fora o mundo real, onde há gordas, pretas, mulheres, viados, idosos, transexuais, pobres, enfermos, fracassos e dúvidas, muitas dúvidas. É nesse mundo que eu estou e que você está. E onde eles, os gordofóbicos, também estão, mesmo que tentem não estar. A perfeição não é do mundo dos magros. A perfeição é o mundo como ele é dado: sortido e multi. Lutemos pelo direito de sermos quem somos, pelas nossas cores vivas.

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O golpe

16/04/2016

Esses dias assisti a uma série chamada Auschwitz, do Netflix, contando a história do maior campo de extermínio de toda a história da humanidade. Um milhão e cem pessoas foram mortas ali. A série fala sobre como a ideia de Auschwitz foi engendrada, seus idealizadores, seus funcionários, sua estrutura. São documentos, atas de reunião, deliberações e até depoimentos de quem sobreviveu, dos dois lados, prisioneiros e agentes da SS. Das 8 mil pessoas que trabalharam no campo de extermínio, menos de cem foram condenadas. Alguns tiveram penas bem brandas, como o homem que recolhia e contava e depois distribuia o dinheiro dos que chegavam ao campo. Ele só foi condenado, em 2015, a míseros quatro anos de prisão.

A série é para quem tem estômago forte, me despertou sentimentos cujo nome nem sei e estou há dias elaborando essa tristeza profunda. A coisa mais assustadora, entre tantas coisas aviltantes e aterrorizantes, é ver a tentativa de justificativa daqueles que pensaram na “solução final” e que elaboraram os planos de morte, os projetos dos fornos e dos crematórios. As crianças, as mulheres, os velhos e os doentes chegavam no campo direto pro forno. Pensa bem. Alguém teve essa ideia e escreveu o projeto que foi acolhido pelos seus comparsas: “puxa, que ótima ideia! queimar as crianças logo de uma vez…” E depois fumaram charutos e foram todos pra casa dormir em paz, no seio da família, enquanto fornos queimavam pessoas 24h por dia, 100 mil pessoas por dia.
Eles todos alegam ter motivos, uns falam da atmosfera do momento, outros que estavam trabalhando, cumprindo ordens e alguns até deixando escapar que ainda concordavam com a ideia da “solução final”. O mandante de Auschwitz, em suas memórias, explica tudo, e jamais se arrependeu ou pediu perdão ou achou que errou. Ele achava lindo o plano. Foi levado a Auschwitz para ser enforcado olhando para o monumento ao horror, que construiu.

Vendo essa loucura tomando conta do Brasil, os discursos que tentam justificar o injustificável, às vesperas de um golpe que vai tirar a democracia de cena e empossar, mais uma vez, os pulhas, os canalhas, os criminosos confessos e condenados, para que dancem na cara da gente, rindo com escárnio por não termos o direito de escolha, por sermos o gado enganado pela mídia criminosa, pelos ardis mais imundos, para que os que sempre mandaram e mamaram na miséria deste país continuem reinando, incólumes e com autorização legal.
Dentro de mim, é como se visse o 3º Reich subindo no pódio, vencendo, mais uma vez, pisando na cabeça dos mortos pela democracia e de nós todos, que um dia achamos que também tínhamos direito a viver em um país que olhasse para sua gente. Ledo engano. O Brasil não é para os brasileiros. É pra eles. E eles estão aqui agora, mas já estiveram em Auschwitz, no massacre dos armênios, no Boko Haram, no terrorismo religioso que mata inocentes e no governo que tira a merenda escolar das crianças. Se eles ganharem no domingo, voltamos pro campo de concentração.

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quiet storm*

03/04/2016

vc era estranho. formal. sério. daquele tipo que aperta a mão e tem um jeito desajeitado de dar dois beijinhos e de abraçar sem encostar. olha nos olhos de leve, ri de lado, e nunca manda beijo na assinatura do email. um abraço, no máximo. mas naquela primeira reunião presencial, numa camada acima daquela onde estavam nossos computadores com mil abas abertas, onde a produção bombava, onde eu aprendia com vc, senti um calor borbulhar bem no centro da mesa. me ajeitei na cadeira um pouco desconsertada, dei um gole na limonada aguada, pedi um café.

quiet storm. lembrei do baile charme, da música pra sensualizar. quiet fire. tive vergonha de te desejar, porque vc não é meu tipo, aquela nao era a ocasião, nem o lugar. mas passei a semana pensando naquela centelha que pingou ali, entre tablets e notebooks e fez um buraco no epicentro da mesa de reunião. não sei se vc reparou. mas eu vi.

quando nos reencontramos, raramente e exclusivamente a trabalho, sinto um pequeno desconforto por não saber o que fazer com esse tesão infundado. depois a vida passa seu arrastão e leva tudo.

hoje eu te vi com uma mulher. numa mesa de bar, bebendo e beijando o beijo mais lascivo, lambendo pescoço, cheirando, idolatrando, endeusando, querendo aquela mulher, como se ninguém estivesse em volta. pura luxúria. assisti de longe seu desejo derrubando paredes, atravessando avenidas, escalando penhascos, invadindo quartos pela vidraça, descabelando e entortando a linha do horizonte.

eu sabia.

.sunset

*para ouvir Quiet Storm: https://www.youtube.com/watch?v=ETGXvWFoEi0&list=PLZLxC6rAOhrjdK3Tnm6Onti5OQziuFu-E

empoderada

01/04/2016

vi um video, com bilhões de curtidas e compartilhamentos, estimulando mulheres a aprenderem a se divertir consigo mesmas. Sugerindo que uma mulher deve experimentar sentar sozinha em um restaurante e pedir um prato maneiro, ou ir ao cinema sozinha e chorar num filme emocionante, ou ver arte num museu, ou simplesmente passear num parque para aprender a apreciar a própria companhia. Como se elas nunca tivessem feito isso antes. Para meu espanto, lendo os comentários, vi que muitas realmente nunca se divertiram ou tiveram prazer sozinhas. Me parece que a mensagem subliminar é: tente! vc tb existe sem um homem à tiracolo pra te qualificar como mulher.

As novas mulheres falam tanto em empoderamento. Mas precisam começar pelo começo. Mulher é mulher do momento em que nasce até morrer. Mulher não é sinônimo de beleza, de juventude, de gostosura ou charme. A mulher não desaparece quando amadurece, nem precisa ficar se afirmando, aprendendo como amar depois dos 40, como se renovar depois dos 50, como começar uma nova atividade depois dos 60. A vida é uma linha continua que só para quando acaba. No meio pode ter família, filhos, namoros, casamentos, viagens, trabalhos diferentes, mudanças de casa, de direção, de crença, de preferência sexual, de hobby, de profissões ou atividades. esse papo é coisa de cartilha feminina americana dos anos 50, que rezava que mulher tem que ter um homem só na vida, mesmo que o homem tenha mil mulheres, viver para a família, se dedicar a uma única atividade e depois, quando as leis trabalhistas definirem, parar e começar a se perguntar como foi perder tanto tempo precioso, correndo pra ver o que ainda é possível fazer enquanto a morte não vem. A vida da gente acontece em camadas, em dimensões variadas, não tem monoplano nem pra quem gostaria que tivesse.

As mulheres, enquanto vivas estiverem, podem amar, mudar, recomeçar, renovar, sem se explicar, sem precisarem se sentir diferentonas porque estão vivendo a vida! Esse papo de que os 50 são os novos 40 só dizem respeito à aparência, fazendo, mais uma vez, o jogo do patriarcado. Ufa, em vez de perder o marido para duas de 20, aos 40, agora ganhamos 10 anos. Nada disso! Não vou admitir ser tratada como uma veterana, como coroa, como tia secundária, como velhinha, só porque não tenho mais 40 anos. eu sou mulher. e vou ser mulher até morrer. sem papo de idiotizar a “melhor idade” (expressão que todo velho detesta, claro), sem precisar saltar de paraquedas e falar a gíria da moda pra parecer jovem, sem fazer plástica e sem ter que ser a coroa excêntrica que se veste como uma árvore de natal, de cabelos brancos, pra dizer que assumiu a idade e não tá nem aí. vai ser do jeito que eu quiser. eu que decido. fim.

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