Aracelli, Meu Amor*

23/03/2020

Lá pelos meus 17 anos, eu andava pelo mundo com o violão debaixo do braço. Não tinha ainda essa autocrítica corrosiva e paralisante, que tantas vezes me impediu de terminar uma canção, de publicar um texto, de me atirar num improviso de voz. A única coisa que importava era a felicidade, e o orgulho, de portar minha arma musical debaixo do braço, meu salvo-conduto pra alegria, meu abre-alas-que-eu-quero-passar. E passava.

Em qualquer canto eu tocava meu violão chinfrim, forjado na escola da minha curta, e intensa, vida. Eu era mestrada e doutorada em VIGU, Violão e Guitarra, a famosa “revistinha” onde a gente aprendia a tocar tudo que é tipo de música. Bastava copiar os gráficos dos bracinhos, com os dedos, nos braços do violão, e fazer as “posições”, que outros poetas chamam de acordes. Eu não sabia de nada, mas conseguia tocar pra me acompanhar. Cantar, e fazer cantar, era a melhor coisa da vida.

Naquele tempo, bastava um maço de Marbolo vermelho e duas porradinhas** de Fanta laranja com Velho Barreiro pra uma cornucópia de canções se derramar sobre a mesa. O violão rodava nas mãos dos amigos e era música da moda, MPB clássica, samba, sucessos radiofônicos e composições próprias. Aos 16 eu já fazia umas canções e tinha inventado meu próprio sistema de cifragem, por pura vitória da inteligência sobre a ignorância. Eu não sabia de nada. Mas queria cantar e tocar.

Num feriado, lá vou eu pra Teresópolis, de ônibus, com uma amiga. Eu e meu violão. Todos os assentos ocupados, turistas e teresopolitanos. Na subida da Serra verde, silenciosa e fresca irrompe, lá dos bancos de trás, uma voz gutural, um trovão dos recônditos do inferno, que faz tremer toda a carroceria: “Eu matei Aracelli! Eu matei Aracelli!” . Era a voz de um demônio de filme subindo das profundezas, aquele subgrave reverberando dentro da caixa torácica da gente. E ele berrava, rouco e furioso: “Fui eeeeeeeu, eu matei Aracelli! Fui eeeeeeuuuu!”.

Eu e minha amiga nos entreolhamos, chacoalhando, arrepiadas de medo. Algumas pessoas começaram a rezar, outras a chorar baixinho, a suar, a se abanar, a passar mal. O motorista não ouvia nada lá da frente e subia a serra, calmamente. O terror domina o interior do ônibus e a voz aumenta de volume, vociferando coisas cada vez mais aterrorizantes. Poucos têm coragem de olhar pra trás, com o medo terrível de não saber o que temer.

Aí eu vejo o meu violão, deitado no bagageiro superior, bem acima da minha cabeça. Num impulso de coragem, levanto, pego o estojo, sento de volta, desembainho o violão e começo a tocar. E decido cantar bem alto, pra cobrir a voz do terror, pra tentar quebrar a atmosfera de pânico com música. Minha amiga entende a ideia e canta junto, “… me leva amor, lá lá lá láiá lá, me leva amor, amooooor, amoooooooor, me leva amor, por onde for quero ser seu par…”, encobrindo a voz do mal com a canção “… olha a lua branca a se derramar, ao luar descansa meu caminhar…”. Uma voz aqui e outra ali chegando junto. E passam Caetano, Djavan, Gonzagão, Gilberto Gil. Vem Paulinho da Viola, Angela Rorô, Peninha, Chico Buarque. Baixa Beth Carvalho, Joyce, Marina Lima, Rita Lee, Kid Abelha. Os passageiros cantam junto com mais coragem, a voz do mal ficando abafada, o mal calado, o mal mudo. O mal levantando e pedindo pra saltar antes de chegar na cidade, cuspindo escorpiões e marimbondos, e o rastro de enxofre se dissipando no ar puro e verde da mata.

Nesse dia, meu violão chinfrim, meu destemor juvenil, minha garganta (meu Marte em gêmeos) e a música popular brasileira calaram o mal. Chegamos sãos, salvos, mortos de medo, armados e perigosos de tanta música. Assim seja.

*Aracelli, meu amor é o título de um livro, de José Louzeiro,  sobre o assassinato e estupro da menina Aracelli, crime terrível e famoso dos anos 70, que até hoje não teve solução.

**Porradinha era bebida de adolescente dos anos 80. Uma dose de cachaça, Fanta laranja até completar o copo, a mão segurando um guardanapo na boca do copo, e uma porrada com o copo na mesa. Aquilo espumava e subia e a gente, pimba, botava pra dentro.

apocalipse now

09/11/2016

Qdo me perguntaram o que eu desejaria como última refeição, no corredor da morte, caso eu alguma vez o visitasse, pensei: peixe frito com cerveja. Robalinho, trilha, sardinha… Peixe frito, pra mim, tem que ser inteirinho e pequeno, passado no fubá, acompanhado de limão cortado na hora. Cerveja tem que estar glacial. Fritura mora na rua, ao lado da cerveja gelada. Delícias que visito e desfruto com respeito, na rua.

Comprei peixe fresco e temperei com limão, pimenta e alho. Era pra assar. Uma amiga veio trocar ideia, sobrou cerveja.

Golpes, Temer, Crivella, Cabral/Pezão. Trump. O mundo acabando, na minha frente.

Salguei o peixe, passei no fubá, e usei azeite, muito azeite de verdade. E fritei peixe em casa, pela primeira vez. E abri a cerveja. E cortei o limão.

Foda-se.

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nós, os exilados

25/09/2015

tempos pesados. apartheid social no Rio, a verdadeira face do carioca aparecendo, o mito do brasileiro gente boa, cabeça aberta, por terra.  somos caretas, ignorantes, tementes a autoridades religiosas e ao bicho papão. o fundamentalismo desponta impedernido e bravo, prometendo mais alguns anos de escuridão pela frente. mal colocamos a cara pra fora, depois de anos de chumbo, e lá vêm eles, os neonazistas, os milicianos “do bem”, com seus assassinatos de meninos, sua chacina de índios, sua defesa da falida família tradicional, sua exploração predatória da natureza, seus lucros exorbitantes e seus celulares que valem mais que mil vidas de pretos pobres.

hoje as trevas deitaram sobre o país, com o Estatuto da família. se eu fosse homossexual, pensei, pedia exílio agora, e sumia de um país que não me enxerga, não me quer, não me respeita. não ficava pra perder essa guerra e ia existir em outro terreiro. raiva.

da mesma forma, me sinto rejeitada, mal amada e desprezada pelo meu país. infeliz e cansada com as portas que nunca se abriram pra mim, desprofissionalizada em dose dupla, envergonhada. ando visitando meus porões escuros, pisando no lodo do fundo do meu poço, refletindo e chorando muito por mim, pelo Rio, pelo Brasil. ando tomada dessa tristeza universal, querendo dar as costas pra terra que amo e que não me quer, sem ter como.  

Ai lembrei da Síria, e dos refugiados que preferem arriscar a vida a continuar na sua pátria amada. doeu aqui.

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oroboro

12/02/2015

mudei de casa. adoro a casa nova. mudei de bairro. estou conhecendo o bairro novo. ainda nem sei qual supermercado é mais perto, mais barato, ou qual boteco entrega até mais tarde, ou qual farmácia etc. sei de nada. não conheço a cara de nenhum porteiro, nenhum camelô, nenhum traficante e nenhum morador de rua. só conheço um fruteiro, que trato com o maior cuidado, já que ele é o único que me trata como se eu sempre tivesse estado aqui. And I belong again.

estou aturdida com cenário, figurino e elenco da minha nova vida: muitos turistas, muitas putas, muita gente, muito barulho e poeira preta. praia grande (linda), terceira idade. mudaram as cores e os cheiros da vida. mudou tudo. o paradoxo de Copacabana é que, no bairro mais veloz do Rio, vc tem que aprender a desacelerar. aqui, o limite de velocidade é outro. o povo de Copa é mais faceiro e fagueiro que lépido. eu sou forever young em minha aventura pela terra. reciclo, renasço. pra sempre oroboro

aqui acordei da paixão, voltei à velha forma, não sei para onde vou. sei que, numa vida passada, vim de Ipanema, mas isso já tem tempo. mudar o cenário mudou minha visão inteira, minha perspectiva. mesmo amando minha nova casa, ainda me sinto presa ao éter por um fio, como se ainda não tivesse assentado no meu terreiro. ainda não sou dona dessa nova vida.  de forever young me sinto forever velha, cheia de dores, ocupando um velho corpo, não habito o meu futuro. aí, lembro que não existe futuro, tudo o que há é uma experiência de presente e, portanto, estou onde devo estar. o cenário mudou, mas eu continuo a mesma. estou confusa. perdão.

no metrô, de repente era Paris, um cello tocava Bach. Ao contrário de Paris, os cariocas aplaudem. volto zonza de uma reunião do trabalho social que estou apenas começando a fazer, e que me enche de orgulho e medo. ali, as pessoas são como eu. jovens, alimentam uma estranha fé no trabalho comunitário e lento. me imagino tendo os dias mais felizes da minha vida, tentando levar alguma dignidade ao fim do mundo. depois lembro que vou ter que dormir 5 dias no alojamento improvisado na única escola da comunidade. tenho vergonha de não querer ir. sou jovem, mas sinto dores de velha. madame não gosta de samba. e quem não gosta de samba…

na volta da reunião, entro num supermercado onde nunca entrei, na esquina da minha nova casa. não sei onde fica nada, não conheço os produtos que vendem. uma ironia, uma metáfora da minha vida. compro o vinho da promoção e uma manteiga de Minas, que nunca provei. teve bom.

aquele canto verde de morro, que já sei que brilha quando chove, o céu estrelado visto da cama e as paredes azuis já são meus. até este ponto, cheguei.

 

araras doda 020

 

PS: Acabo de ler: “É preciso reinventar o risco e a aventura contra a segurança e o conforto.” Malvine Zalcberg

Tá bem.

domingo

21/09/2014

Haverá um domingo chuvoso como hoje, em algum momento de um futuro remoto, sobre o qual nem consigo pensar (choro, mesmo suprimindo o pensamento à força), em que me faltará a mãe. E tb o pai. E alguns dos meus amigos mais queridos, que já começaram a partir, devagarzinho, cada um por seu motivo. Uns abandonaram o barco, outros desembarcaram voluntariamente, outros naufragaram. Nós outros continuamos remando, tentando emplacar a nossa grande viagem de circunavegação, nossa travessia da grande água, desbravando o desconhecido ultramar em busca da especiaria que nos falta, o sal da vida, aquilo que dá sentido ao insensato, que dá gosto ao insípido, que colore o incolor, que perfuma o inodoro. Quando a gente nasce, a gente ganha um pote vazio e sem fundo, onde se pode colocar qualquer coisa, de qualquer natureza e matiz. Neste momento, inventario o meu pote. Estará ele cheio do que me é mais caro? Perdi tempo colhendo o que não desejo, por descuido ou capricho, ou doença ou ignorância? Quando estarei, enfim, treinada para escolher a dedo aquilo que importa, nesse exercício permanente de aprender a filtrar e peneirar, selecionar e rejeitar, apontar e desapontar? para, então, desfrutar plenamente dessa dádiva em toda sua transitoriedade? Meus sentimentos confusos encobrem a razão e estou, agora, com seis anos de idade, perdida na praia cheia, sem saber pra que lado caminhar. 2014-08-22 17.26.27

50

14/07/2014

à beira de fazer aniversario, saio de um show numa rádio, pela manhã, mal dormida, pensando no show que terei, exatas 12 horas depois.

chego em casa, ligo o ar, desligo os telefones e me permito dormir o soninho da beleza entre um show e outro. durmo fácil como se fosse.

sonho que estou à beira de uma piscina muito turquesa,  cujas bordas se nivelam ao gramado em redor, como se a água sempre tivesse estado ali, brotando do centro do quintal.

vejo uma criança-delfim me convidando para entrar na piscina, mergulhando desaparecendo numa borda para aparecer em outra, um erê-sereia, chamando sem chamar. vou.

me jogo, mergulho, desta vez por uma espécie de túnel no ar, uma fenda na parede da paisagem por onde entro, como se pulasse um muro pra dentro do mundo.

mergulho e brinco de encontrar a criança dentro d’água. ela foge de mim, nos perdemos, ela ri de mim. e qdo boto a cabeça pra fora, só dá tempo de eu ver as  paredes do mundo se fechando em volta da piscina, retângulo perfeito, erguendo uma muralha de cimento que vai subindo qual torre de babel ao infinito, em volta do perímetro perfeito da piscina. e lá estou eu, no fundo de uma garganta sem fundo. meu paraíso começa a ser emparedado e o sol, que brilhava e azulava tudo, vai virando uma janela remota lá em cima, retangular, uma claraboia que vai se afunilando enquanto sobem as paredes de cimento, em volta de mim, ao universo e além.

minha claustrofobia quase se rende quando percebo um caco caindo do muro eterno, deixando ver o mundo lá fora e, dali, já consigo avistar um pedaço de paisagem, um céu azul, montanhas verdes ensolaradas e outras águas. por conta própria, o cimento da parede vai descascando, saindo como se fosse a casca de uma fruta que se tira com as mãos, espiralando. só que aqui, a polpa da fruta era o lado de fora. a parede se dissolve, e o muro se desfaz em troça. dentro da piscina permaneço, de  novo ao sol, de novo vislumbrando um canto de natureza meio torta, meio Dali. e aí, o céu é meu, e eu sou a dona daquilo tudo de novo.

e nem sei porque, naquela hora, no meio do sonho, eu tive certeza de que as paredes cederam por mim, a mim, e que o sol iluminou a piscina e que o céu era azul, pra mim. só pra me avisar que era meu aniversário e que tudo, tudo está no seu lugar.

perdi um pouco a hora, levantei correndo, segunda sessão começando em breve. 50 anos. banho, maquiagem, cabelo, figurino, malinha, taxi. 50 anos.

2014-03-15 17.01.19

 

 

 

 

 

aceitação

29/05/2014

nada existe, só o momento que invento, este momento, que passa por dentro de cada letra de cada uma dessas palavras e já não é mais o mesmo na próxima. e assim, o tempo escorrega, aquoso, volátil, esquivo.

tenho pavor do futuro. que bom, o futuro a deus pertence.

a mim só pertence o presente.

2014-04-23 00.01.54d

 

 

 

a rua está pesada. cenhos fechados, olhares duros. defensiva-agressiva bombando. a gentileza morreu. os sorrisos se apagaram. todo mundo defendendo o que acredita ser seu, com unhas e dentes, aos trancos, às cotoveladas.

as pessoas estão tristes pq precisam sair das suas casas pra morar em lugares que não conhecem, pq nao podem mais pagar o que cobram onde sempre moraram. as pessoas estão cabreiras. os ladrões invadem prédios e condomínios e roubam o que bem entendem e saem lépidos e fagueiros, como se nada houvera. as pessoas estão apavoradas com os preços, e trabalham cada vez mais, desesperadamente, só pra poderem continuar vivas, trabalhando cada vez mais, desesperadas pra pagar os preços que alguém atribuiu às coisas.

desculpem, não tenho nenhuma novidade boa pra contar. todas as novidades que chegam a mim, neste país, me fazem me retrair, me recolher, me intimidar, me fechar na minha concha enquanto faço planos de ir morar numa ilha deserta e viver de pesca e frutas. e só.

mitológica

24/07/2012

andei sumida. a vida tem horas que é indizível. escrevi e parei no meio de mil posts. experiências impossíveis de transmitir. o ano que passou vai ficar pra sempre na memória como aquele em que não enlouqueci. desisti, claro, mas não contei pra ninguém, pq se a gente desiste publicamente, tem que dar satisfação, explicar o inexplicável. a mãe fica sem dormir, o pai fica ligando pra saber se está td bem, a irmã não tem como ser mais fofa tentando ajudar, os amigos ficam querendo fazer alguma coisa, sem poder.  sumir no mundo foi o único sonho que me restou. amor é uma coisa maravilhosa de ter, e aceitar o amor é a melhor auto-ajuda que existe. em respeito a tanto amor e delicadeza, desisti mas fiquei quieta, em silêncio, sabendo que tudo passa, que não adianta ficar desesperada e que o momento presente é o que importa. só me mexia quando alguém estava olhando, cumprindo a tabela do esperado. É uma tática para se parecer vivo, quando não se está. tudo muda, as coisas boas e ruins, não tem jeito. sabendo disso, sobrevivi.

recuperar e ressignificar uma vida é uma reconstrução cansativa, dolorida, que traz sempre a sensação do Sísifo, aquele eterno infeliz mitológico que passou a vida empurrando uma pedra montanha acima, só pra vê-la despencar lá do alto e começar tudo de novo. pointless. sou acidentada por dentro. tenho um senso cruel de realidade e não-sonhos por causa de um fio terra que nunca me libera. o medo da prisão aprisiona. minha sobrinha de 11 anos falou que eu sou como aquela personagem da novela que diz: “ainda não nasceu o homem que vai mandar em mim”.  acertou, a bandida.

sinal fechado

30/05/2012

tem dias em que não vai ser possível olhar nos olhos, nem abraçar, nem falar da vida. apenas manter tudo bem na superfície, falar de amenidades, ver novela, falar mal de um novo cantor, ver um filme sem prestar atenção. se embriagar, embora perigoso, é excelente nesses dias, a gente bebe de se perder e depois dança, dança, dança como se não houvesse amanhã. e na verdade não há. nesses dias, não pergunte se tá td bem e nem qual é a boa, pq o que tem é uma vontade desesperada de chorar. e um medo de arrepiar.

plano B

25/07/2011

O andar 71/2 do Quero ser John Malkovich;  uma coisa entre uma coisa e outra coisa;

A plataforma 9 3/4, onde Harry Potter embarca pra Hogwarts, escola de magia;

O guarda-roupas das Crônicas de Nárnia e lindas florestas encantadas onde se refugiar;

A Terra do Nunca e o congelamento do tempo;

A Terra Média, dos Hobbits, com as casinhas redondinhas e fofas e fumacinha saindo da chaminé;

Pandora, de Avatar, e suas anêmonas flutuantes e seus rios fluorescentes;

Shangri-lá e suas fontes murmurantes.

Supra-realidade: procura-se. Paga-se bem.

reiniciar

30/05/2011

travei.

onde fica o botão do reboot?

Quando era bem novinha, na vida passada em que fui bailarina, eu dei muita aula de balé, pra baby class e adultos. Dei aula até de dança afro, que estranhamente psicodancei pra substituir a Dil Costa, minha professora interrompida por uma intempérie da vida.

Alongamento, alongamento em dupla, clássico, jazz e sapateado, minha especialidade!  Eu dançava super bem, tinha inteligência corporal, fluidez. Mas a vida toda no eterno engorda-emagrece-engorda, apesar de toda inútil neurolinguística, percebi que não tinha physique du rôle para o mercado da dança, que acabei abandonando, embora ainda ame dançar. E também, reparei que eu era uma má professora, burocrática, sem saco.

Como morei na Inglaterra, também dei aulas de inglês. Odiava com toda paixão.  Acho que os alunos também, porque eles, assim como os clientes da funerária, nunca voltaram. Depois que estudei música, fiz uma super formação para professores, na Pró-Arte, excelente para quem tem… talento para dar aula. Dei aula de musicalização em colégio, em pré-escola e até em creche. Toquei violão para bebês, no berçário. Metade chorava de medo, o resto, dormia. Precisada de ganhar a vida e pagar as contas, eu acordava aos prantos, na hora de ir pra creche, como se fosse enfrentar leões famintos. “Mas são apenas bebês!!!” – dizia meu ex, ao me ver acordar em pânico total, no dia de dar aula pras crianças que engatinhavam em volta de mim, no piso fofinho da creche. Tinha verdadeiro terror das crianças maiores, embora eu me entenda bem com crianças, em geral. Eu fantasiava que a diretora da escola ia entrar na sala, acompanhada de guardas, e gritar: “Prendam essa impostora!”

Resolvi dar aulas particulares. Nada como adultos escolhedores e interessados. Qual o quê! Meus alunos pagavam adiantado e sumiam! Eu era escalada pra bater papo, pra ouvir confidências, pra sair pra beber, até pra festa de seres andróginos eu fui convidada. Mas aula que é bom, nada! 

Em verdade, em verdade vos digo: odeio dar aula e sou péssima professora. Menor saco, menor entusiasmo. Recentemente, quando eu disse que não dou aula (de canto), ouvi: “Ah, é, sua egoísta? Quer o que sabe só pra si, né?” Fiquei bolada. Na tentativa de ressignificar conceitos, arrisquei novamente. Quem sabe, num novo momento? Água! A aluna sumiu depois da segunda aula. E eu encerrei esse capítulo da minha história, definitivamente. E é por isso que a alternativa nº1 de quem trabalha com música não é uma alternativa pra mim. Aí eu fui cozinhar. Mas isso já é outra história…

O técnico do meu computador, há anos, é uma pessoa muito especial. Todo mundo acaba fã. Ele é um cara de paz, de boa vibe, sorrisos e competência. Realmente um doce de criatura. Com o tempo, ficamos amigos. Ele e a mulher, igualmente fofa, vira e mexe vão aos meus shows. Muito queridos.

Hj ele esteve aqui e, enquanto trabalhava,  conversamos sobre a vida, como sempre fazemos. Eu contei que estou meio perdida, pq vou perder a fonte de renda fixa q tenho tido nos últimos 12 anos e de repente me deu um pânico de tudo, de nao saber como vou pagar o aluguel, ao mesmo tempo em que a minha carreira está indo especialmente bem, apesar de eu não ganhar (quase) dinheiro algum com ela.  Comento que faço de tudo pra manter a calma e não sofrer por antecipação, que estou investindo em outras frentes, que o tempo dirá, que tudo pode acontecer, que nem adianta querer fazer planos, que sei que planos não acontecem como planejamos…

Realmente, todos os dias faço um exercício zen de desprendimento, enqto me preparo para uma nova realidade desconhecida.  Dispenso a faxineira-amiga de 12 anos e choro no banheiro.  Mas o tempo não é meu. O rio nunca apressa suas águas.

Ao mesmo tempo em que ele achava a solução pro problema insolúvel do computador, o rapaz que consertava um problema de luz aqui, tb encontrou a saída. A luz foi feita, fiat lux! Brincamos que foi o mesmo anjo, que veio aqui dar jeito nas coisas. Na mesma hora agradeço intimamente e peço pro anjo stand by me, esse anjo da luz.

Quando ele saiu, computador ok, vejo que ele deixou uma página aberta, com uma frase que ele tinha citado no nosso papo:

“Não vos inquieteis, pois, pelo dia amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.”

Corro pra varanda, pra agradecer, comovida. Ele sorri.

Senti uma piscada de anjo e renovei minha fé na vida e no porvir. Rezo de novo, pra nunca deixar de reconhecer os milagres cotidianos, que dão colorido à estrada.

on life

06/07/2010

Afinal, que diferença há entre ser jovem e não ser jovem? Quando a gente é jovem, todo mundo é jovem em volta da gente. Até nossos avós. E a esperança mora na juventude. A vida é o porvir, oportunidades que virão, um futuro mágico a descortinar. As pessoas quase não adoecem, ninguém morre durante anos. Mas aí a gente fica adulta e pronto. Cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai,  não fica nada. Ando na rua tentando não olhar em volta, porque o mundo agora me parece todo em despedida.  Não tenho um deus que me rege, não tenho fé religiosa, não acredito em milagres, não acredito em reencarnação, nem em céu, nem em inferno. A vida assim é muito árida, diz a minha mãe. Árida ela é. E olha que eu tenho um vidão…

Tá bem, to chata, falo nisso há mil posts, fiquei até sem escrever pra ver se o assunto mudava, mas não consigo mudar o disco aqui dentro, tb. Sorry, esse blog tb serve pra isso.

restam a música e a praia (e a guinguin)

o medo da tristeza

17/06/2010

No rádio do taxi toca Overjoyed. Estou tão overwhelmed com tantas intempéries, me sinto impotente, inútil e fraca e queria dar um reboot e mudar de fase. Me sinto pior ainda por isso, covarde e imprestável, pq não me sinto capaz de dar conta de tudo o que devo dar conta e nem é tanto assim, perto do que uns e outros aí passam…  Caio no choro no banco de trás enquanto, do lado de fora, o sol volta a brilhar lindamente, esquentando um pouco do clima glacial que acossa o Leblon e meus ossos, um pouco pela tristeza de tudo, um pouco pela temperatura estranhamente gelada. Me sinto aliviada por não ter colocado filhos nessa roubada. Mesmo que a vida seja uma dádiva blá blá

Preciso lembrar de lembrar de saborear tudo com gosto, minuto a minuto, pq tudo passa correndo e o tempo devora e tritura todas as coisas em volta de nós. E a gente tem que ter felicidade simplesmente por ainda ter algumas coisas inteiras. Pq as coisas quebram e pronto. Depois que quebram, adeus.  Não estou preparada para a vida, acho.

Minha amiga, aparentemente navegando pelas mesmas águas que eu, me pede: “me conta uma coisa bem boa? estou com medo da tristeza”. Tb to, querida, morrendo de medo! E contra tristeza, não há guarda-chuva, já disseram. Mas a gente tem uma faixa bônus: música. Música é a nossa melhor vingança.

meu melhor amigo está deprimido, perdido nos labirintos da vida. Vida adulta chata, realidade. A vida adulta tb tem me assustado e suas atribuições me metem medo. Eu e minha irmã temos nos preocupado com a família. Falar nos aproxima e conforta. Às vezes eu choro escondida.

meu outro melhor amigo vai ter um encontro. Torcemos pra que seja tudo lindo gostoso e feliz,  pessoa legal, que mereça ele e trate ele bem. Estamos todos  muito cansando de tantas tentativas e erros (e qtos erros…)

minha melhor amiga está ansiosa, apaixonada, sofrendo, fumando um cigarro atras do outro.  está desesperada para ser feliz, como todos nós: “mas por que não posso ter tudo ao mesmo tempo?” pode, claro. então,  vamos encantar a vida

eu tb ando buscando a centelha da paixão que nos faz melhores compositores e cantores e torna a vida mais colorida.  vou atrás das emoções, estou tentando me manter bem viva.

enquanto tudo isso, a manhã expulsava a noite que pairava sobre a princesinha do mar. you see, eles não sabiam que era impossível…


Pelo telefone, João me conta que leu o livro Wicked*: The Life and Times of the Wicked Witch of the West, de Gregory Maguire, que conta a história pregressa da Bruxa Malvada do Oeste, aquela bruxa verde d’O Mágico de Oz. A história rola antes de ela virar bruxa, pré-Oz. Antes de se tornar aquela figura abjeta, ela era uma moça normal, que foi rejeitada por todo mundo, desde sempre, por ter nascido verde. E por isso, por essa rejeição à sua particularidade, ela se tornou bruxa.

Caio aos prantos, ao telefone, com essa frase: “rejeitada por ter nascido verde”, e morro de pena da Bruxa Malvada do Oeste, como se finalmente eu tivesse entendido um velho sentimento meu: eu sei o que é ter nascido verde, eu sou uma bruxa malvada do oeste! Passei as maiores e mais solitárias infelicidades por ser verde. Passei as maiores frustrações tentando ser de outra cor. Assim como muitas pessoas e suas nuances de cores, absolutamente pessoais. Todos nós somos uma cor nesse arco-íris que é o mundo real, este que habitamos, com suas true colours.

“I have a dream”, disse Martin Luther King, sonhando com o dia em que brancos e negros sentarão, realmente, à mesma mesa. Eu também tenho um sonho colorido: que as pessoas nunca mais sejam rejeitadas e precisem virar bruxas por terem nascido brancas, negras, amarelas, azuis, vermelhas ou verdes.

oi, amiga

oi, amiga

* sim, virou musical.

2013-10-20 20.33.17green

oi