parece que os dias de ventanias quentes revolvem velhos sentimentos. Já escrevi isso, há muitos anos. E como é verdade pra mim, estou aqui, toda mexida, ouvindo Nancy Wilson cantar The very thought of you, num link que a grande cantora Aurea Martins, minha amiga, que admiro demais, dedicou a mim e à Ana Costa, outra cantora que admiro e curto muito. Somos três cantoras brasileiras.

Áurea nos chamou de guerreiras, e eu, nesta noite de vento quente, com o lodo do fundo revolvido, estufei o peito achando bom, muito bom. Ser uma guerreira nesta guerra santa, brigando exclusivamente para continuar cantando neste país de surdos, sem padrinhos, sem dinheiro, só com o amor no coração, é a luta da minha vida, my quest, diria Dom Quixote, minha lei, minha questão. E da Áurea. E da Ana.

Então, deixo pra vocês o video Áurea, guerreira mór, conselheira perspicaz, que no dia do lançamento desse micro-documentário, ensinou: “Eu sou de fazer. Sem fazer, a gente não consegue nada, nem fracassar”. Me vejo aí, rio e choro, e peço aos deuses que me dêem a sorte de uma carreira longa e linda como a dela.

o medo da tristeza

17/06/2010

No rádio do taxi toca Overjoyed. Estou tão overwhelmed com tantas intempéries, me sinto impotente, inútil e fraca e queria dar um reboot e mudar de fase. Me sinto pior ainda por isso, covarde e imprestável, pq não me sinto capaz de dar conta de tudo o que devo dar conta e nem é tanto assim, perto do que uns e outros aí passam…  Caio no choro no banco de trás enquanto, do lado de fora, o sol volta a brilhar lindamente, esquentando um pouco do clima glacial que acossa o Leblon e meus ossos, um pouco pela tristeza de tudo, um pouco pela temperatura estranhamente gelada. Me sinto aliviada por não ter colocado filhos nessa roubada. Mesmo que a vida seja uma dádiva blá blá

Preciso lembrar de lembrar de saborear tudo com gosto, minuto a minuto, pq tudo passa correndo e o tempo devora e tritura todas as coisas em volta de nós. E a gente tem que ter felicidade simplesmente por ainda ter algumas coisas inteiras. Pq as coisas quebram e pronto. Depois que quebram, adeus.  Não estou preparada para a vida, acho.

Minha amiga, aparentemente navegando pelas mesmas águas que eu, me pede: “me conta uma coisa bem boa? estou com medo da tristeza”. Tb to, querida, morrendo de medo! E contra tristeza, não há guarda-chuva, já disseram. Mas a gente tem uma faixa bônus: música. Música é a nossa melhor vingança.

Fatima Guedes reina soberana, rainha imperatriz da composição popular brasileira. Ela borda lindas melodias, doma harmonias e preenche o palco com a certeza absoluta de tudo o que é. Intérprete vigorosa e entregue, ela paira muito acima de nós, humildes servos, ajoelhados aos seus pés. Ela é o topo da cadeia alimentar.

Fatima merece um trono todo de ouro, uma estátua em praça pública, um monumento. A música dela sempre me encantou. Mas agora que eu sou uma mulher feita, a música dela reverbera dentro de mim com propriedade. Ali estão todas as filigranas de tudo, decupadas pelo olhar arguto dela.

Fatima faz música para adultos, para os vivos, para nós, os aprendizes. Quase acabei com os guardanapos da Lapinha, de tanto que chorei. Um choro que começava com a música e ia ecoando lá dentro de mim, cantora, mulher, vida difícil, a minha coleção de frustrações, os mil sonhos que nunca se realizarão. Os amores que não tive, os que tive, os que perdi. Tudo passou dentro de mim, rio caudaloso da minha emoção aflorada, vinho tinto, solidão retumbando dentro do peito.

Olhando pra ela ali, cantando as músicas mais lindas do mundo, chorei por ela, pensando em quanta frustração ela deve colecionar neste país de surdos, esse mercado risível, esse amadorismo permanente com que se trata a boa música e os bons músicos neste país. Dificilimo encontrar um CD dela para comprar. No youtube, só material caseiro. Ela, a mais genial, linda, completa, inteira. Uma mulher preciosamente comum, sem firulas, sem brincos, sem sapato, vivendo aos turbilhões. Fatima, no meu altar vc é deusa. De mim, vc tem todo o reconhecimento que merece. E, humildemente, junto minha voz ao seu canto: “Eu também quero ser, quem não quer? Quero ser feliz”.

Eu estava com o Arranco em Paquetá, para um show de pré-rèveillon na praia,  fazendo hora no boteco-camarim. E tome pastel de camarão, enquanto esperávamos a gloriosa hora de entrar no palco ao lado de velhos bambas como Monarco, Nadinho da Ilha, Walter Alfaiate, Wilson Moreira. A galera chegava e se acomodava na areia, esperando o samba. Alguém recebeu um telefonema e falou: Caraaaca, a Cássia Eller morreu!

Silêncio.

Ficou todo mundo parado, com o coração desafinado e o samba atravessado. Uma tristeza só. Esse papo de o show ter que continuar é coisa que todo mundo fala, mas só artista realmente entende. Subir num palco pra festa com uma pedra no peito é dureza. Mas a gente vai lá, liga o personagem e acaba fazendo o show, mesmo com aquela estranheza atravessando a gente. Essa é a minha lembrança do dia da morte da Cassia Eller.  “Morreu de bobeira”, alguém falou!

Cássia era um escândalo. Sanguínea, quente, entregue, perfeitamente em consonância com o que cantava. Era incrível a presença tomada, colérica, apaixonada, aquele vozeirão que a carregava, rouca, o rosto explodindo, as veias saltando do pescoço. Je ne regrette rien, atacava ela, de Piaf. Já eu, Cássia, me arrependo para sempre de não tê-la visto muitas e muitas vezes. A gente deixa coisas passarem assim, passando, sem prestar muita atenção, e aí já viu… perdeu.

Que eu saiba, nunca houve nem haverá uma cantora como ela. Nem no rock, nem no pop, rien de rien, em lugar nenhum…

A música é só se for a dois, de CAzuza. Só encontrei esse video…

Luanda Cozetti é uma cantora cujo privilegiado ouvido harmônico a deixa livre para voar nas melodias, sem nunca perder a noção do caminho, voltando sempre que precisa para dar um alô ao tema, ao tempo, ao mundo dos mortais. Depois volta feliz para suas escalas de improviso e voa, voa. Intérprete inteligente, que diz a letra da canção, é a cantora mais técnica que já presenciei cantar. Para mim, Luanda é top, pq sua técnica não a atrapalha, jamais.

Luanda Cozetti está “a viveire” no ultramar, em Lisboa, que lhe deu ouvidos muito melhores do que o Brasil consegue dar.

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Dindi, de Tom Jobim.

Taryn Szpilman pintava os cabelos de vermelho boneca quando eu a conheci, cantando na Rio Sound Machine. Um dia, chegando mais perto, notei que ela precisava retocar a raíz… loura! Até então eu só tinha visto loura de raiz preta. Taryn é loura de raiz, mas é esperta como se morena fosse!

Taryn tem aquilo de que ando falando na série cantoras: presença, sangue nas veias, timbre, afinação e personalidade. Faz o que quer com a voz black and blue, passando pelo jazz e pelo rock com louvor. É dona da sua voz e da sua praia. Além de tudo é linda, a bandida. Eu nem sabia, mas hoje é aniversário dela, então vai aí a homenagem. Senhoras e senhoras, com vocês

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* Cristina, de Tim Maia e Carlos Imperial

ps: a banda é um es-cân-da-lo!

Elis Regina é unanimidade, certo? Todo mundo acha Elis a melhor cantora do Brasil, certo? Errado. Cada vez mais tenho ouvido gente falar que não gostava da Elis, que achava ela debochada, antipática, que não gostava do repertório dela. Apesar de conquistar o público com sua emotividade e entrega, ela nunca foi uma cantora fofinha, namoradinha do Brasil. Tinha personalidade forte, escolhia músicas de compositores desconhecidos. Pra nós o repertório dela é hiper conhecido e  palatável. Na época não era. Mas a Elis cantava de rachar. Ontem, no rádio do taxi, fui surpreendida por uma Curvas da Estrada de Santos sinuosa, arrojada, quente, apaixonada. A voz fazendo milhares de percursos diferentes, de emissões, sem nunca perder o fio da interpretação, Elis se integrava ao que cantava, se misturava, la sangre…

Aqui, as curvas da estrada de Elis que, gurinha mermo, teria feito apenas 65 anos. Imaginem como ela estaria cantando agora? Ai, ai…

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* As curvas da estrada de Santos, de Roberto e Erasmo

Muita gente me pergunta o que escuto, em quem me inspiro, quais as cantoras que admiro.  Isso realmente não importa, nem qualifica ou desqualifica ninguém. É questão de gosto pessoal. Mas, como diz um amigo: Gosto É O QUE se discute. Então vamos discutir.

Tentando definir o que gosto num(a) cantor(a), cheguei a algumas reduções. Uma vez eu ouvi a Leny Andrade dizer, das profundezas de seus graves: “cantora é timbre”. Concordo. Timbre é assinatura e, como tal, é intransferível, inimitável. E sangue. Cantoras exangues e assépticas não mexem comigo. E intimidade. Tem gente que não se apodera da própria voz, como se a voz morasse do lado de fora. Cantora, pra mim, tem que ser dona da voz. Sobre domínio da afinação, coisa rara, tenho um especial apreço. Desafinação e semitonação só se for por conceito. E por fim, a cantora tem que servir à música. A voz é apenas a ponte por onde a música passa, de dentro, pra fora. E a cantora dá a cor, o tom, o perfume.

Para inaugurar nossa série, vou começar pela Leny Andrade, que recentemente me fez chorar durante um show inteiro e voltar no dia seguinte. Coisa que não me acontece nun-ca! Aqui, ela canta Ilusão à tôa, obra-prima de Johnny Alf, que morreu recentemente. Para degustar.