vida, minha vida

12/09/2018

Quantos rostos sorridentes, desconhecidos sorrindo pra mim? quilômetros de milhares de bocas sorrindo, de olhos abertos pra mim, de silêncios. Anos e anos pessoas fazendo silêncio pra mim. Olhando pro som que vem de mim, ouvindo o que trago, boas novas e boas velhas, sempre boas, as canções. Quantos camarins, bons e ruins, luz funcionando, luz quebrada. Cadeira boa, cadeira dura, cadeira bamba. Ar condicionado frio demais, calor demais. E quantos espelhos, quantos banheiros pra maquiar de qualquer jeito, pra molhar a barra da calça ao trocar figurinos. Quantos figurinos? Quantos batons? Quantas vans? ônibus e carros e taxis. Palcos então… todos os tipos. Altos, baixos, praticáveis, impraticáveis, carros de som. Palco de andaime, medo de despencar lá de cima, no meio da praça do coreto da cidade pequena. Cidades pequenas, cidades grandes, hotéis. Micro palcos, com o arco do contrabaixo levantando a barra da saia, ou um canto de sala, um cantinho qualquer. Microfones, quantas vezes disse testetesteteste. Retorno, agudo, médio, grave, reverb. Quantos sons passei, quanta luz? Forte demais, escuro demais, verde demais. Médios, então, quantas médias altas pra tirar. E boas noites, sejam bem vindos, espero que gostem, essa música foi, a próxima vai ser, queria agradecer. No palco comigo esta noite, fulanos sicranos beltranos; Quantos músicos e instrumentos e solos e intros e finais. Muitas palmas e uhús. Milhares de palmas e uhus. Milhões de palmas e uhús. Muito obrigada, voltem sempre, tragam os amigos.
Palco do Chiswick town Hall, em Londres, onde dancei balé clássico quando tinha 12 anos. 

salto triplo*

22/11/2017

*escrevi este texto inspirada no show de mesmo nome, que faço com Elisa Queirós e Cacala Carvalho, só com nossas composições.

 

TENHO ASAS, POSSO MUITO BEM VOAR

CRUZAR MIL CORDILHEIRAS E DEIXAR

UMA CORRENTE QUENTE ME LEVAR,

PLANAR SOBRE AS CIDADES, FLUTUAR

DAQUI DE CIMA APRECIO A VISTA E PULO

BRAÇOS ABERTOS PARA A IMENSIDÃO DE TUDO

 

TENHO TERRAS A CONQUISTAR,

SOU UMA AMAZONA CAVALGANDO EM PELO,

DONA DE UM DESERTO DISTANTE E PERIGOSO,

CHEIO DE OÁSIS PARA DESBRAVAR.

PROVOCO TERREMOTOS E ABRO FENDAS

É DO MEU EPICENTRO QUE A VIDA BROTA

 

TENHO SETE MARES A SINGRAR

MERGULHO EM APNÉIA,

PESCANDO PÉROLAS EM CORAIS ABISSAIS,

RAINHA DAS ÁGUAS, SENHORA DAS MARÉS,

SEREIA QUE ENCANTA MARUJOS DO AMOR,

DESÁGUO EM SETE QUEDAS, SALTOS TRIPLOS

E SOU IARA, A DONA DA CACHOEIRA

 

EU TENHO A CENTELHA DO FOGO E ESPALHO A BRASA

TROVEJO, RELAMPEIO E CORTO O CÉU COM MEU FACHO DE LUZ

EU SOU AQUELA QUE CONDENSA E CHOVE,

NASCI EXUBERANTE DO LÓTUS, DA LAMA DOS LODAÇAIS

FEITO UM SOL, RAIO, ME PONHO, RECOMPONHO

E CHEIA DE ALVOROÇO, ALVOREÇO E SOLO

 

AGRADEÇO PELA GRAÇA ALCANÇADA

DAQUI DE ONDE VEJO É TUDO PLENITUDE

TODO PODER E GLÓRIA ME PERTENCEM

CAIO DENTRO DO MUNDO

COM UM SONHO NA CABEÇA, UM SORRISO NA BOCA

E ESSA CORAGEM NA MÃO

 

Vera Cruz*

25/03/2016

(primeiro de tudo, quero que todo mundo entenda que este post é sobre amor, sobre sincronicidade e sobre a música, não sobre personagens).

enquanto to ali fazendo ovos de páscoa recheados com ganache de uísque, pros meus entes queridos, estou pensando em Vera Cruz, música que finalmente vou cantar no meu show BrazJazz, depois de amanhã, depois de uma longa paquera, e de tê-la cantado, pela primeira vez, a convite de um amigo maestro e sua orquestra.

Lembro de ter lido ou visto ou ouvido o Milton “Bituca” Nascimento, em algum lugar, contando a história da importância dessa música na careira dele, um desbravamento, e fui procurar pra aprender e contar no show. Nessa, acabei encontrando um episódio desconhecido pra mim, em que o Márcio Borges, parceiro de Milton na música, fala da amizade de adolescência deles com a presidente Dilma. E que, 40 anos depois, antes de a Dilma ser presidente, mas já depois de todos aqueles anos de luta, eles se reencontraram, e ela pediu pra ele cantar *Vera Cruz, música que  ela ouviu em primeira mão, quando todos eram moleques em Minas. Uma música que fala de uma mulher, mas que também poderia ser sobre um país. Meus olhos encheram d’água de pronto! Eu nem sabia de tudo isso. E escolhi cantar essa música logo agora, o Brasil em chamas…

Senti meu sangue brasileiro me ocupando, um aterramento, uma propriedade. Me senti defendendo a minha casa com a minha voz. E isso não tem nada a ver com os personagens. Mas com a minha voz de mulher  brasileira, hoje e pra sempre livre pra cantar e contar todas as lindas histórias humanas que eu bem quiser. Sem ter que pedir licença ou perdão. Sem ter que me esconder de ninguém.

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não-verbal

21/04/2015

canto mil músicas pra ele, sobre ele, sobre mim, sobre o amor, sobre a paixão, em inglês. as palavras escorrem de mim, na direção dele, liquefeitas e cremosas.

ele não entende inglês. então, de vez em quando, canto olhando nos olhos dele. ele sorri. sempre sorri e me olha lá dentro. no final de tudo, me beija.

acho que ele entendeu.

 

 

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a entrevista em que a Mônica Salmaso fala sobre a situação atual da mpb é um sucesso! todo mundo concordando: indigência, Lepo lepo, Anitta, popozudas etc.

 

Daqui do meu lugar de cantora, há 25 anos em plena atividade praticamente ignorada pela mídia oficial, tenho minhas observações a fazer, advogando, também, em causa própria.

 

Voltando rapidamente ao passado, depois de ter feito milhares de shows em todas as casas bacanas do RJ, tendo feito 10 anos de coisas incríveis ao lado de músicos idem, cantei durante cinco anos na Modern Sound, onde fiz 275 shows. Nenhum jornalista de música foi me ver. A imprensa, que quase não há nesta cidade e, salvo exceções, é monotemática, não dava nem tijolinho sobre o show, pq alegava ser atividade permanente, fora do interesse dos cadernos de cultura. Os jornalistas especializados nunca apareceram, apesar de fartamente convidados por mim. Nunca uma linha numa coluna pra dizer: existe, no Rio, uma cantora que fez 275 shows lotados, sábados à tarde, no templo adorado da Modern Sound.

 

É uma delicada rede de silêncio: sem o jornalista dar uma nota, sem a imprensa falar, o público fica desinformado e eu e todos na minha situação, deixamos de existir oficialmente, tendo que correr por fora, eternamente clandestinos, iniciantes, aspirantes. Inventando formas de existir num universo paralelo ao da mpb oficial.

 

Nestes 25 anos, lancei 5 discos solo, cujos shows de lançamento foram solenemente ignorados pela mídia (não estou falando de crítica aos discos, que tive). Independentemente da qualidade do meu trabalho, ele existe, não estou louca. A apreciação vai de cada um. Mas como provar que ele existe, se ele não existe oficialmente? No nosso ambiente, só existe oficialmente o que tem a anuência da imprensa, da tv, do rádio. O público espera essa autorização, essa recomendação. E nós não aparecemos na TV, não tocamos no rádio e não saímos no jornal. Logo, não existimos.

 

Sou do Arranco de Varsóvia, há 13 anos, lançamos três cds e um DVD neste período. Que eu saiba, também nunca tivemos a presença de um jornalista de música na nossa plateia. Mesmo com prêmios, com parcerias nobres e uma atividade permanente e pioneira, há 20 anos.

 

Há 4 anos sou a única artista residente da única casa de jazz internacional desta cidade. Um templo da música boa, dessa sobre a qual se falou tanto hoje nas linhas do tempo. Isso é um lugar raro de se estar, como cantora, numa cidade como o Rio de Janeiro. Já recebi a canja de artistas incríveis, de músicos de todo o mundo, de plateias vip, mas nunca, jamais, em tempo algum, vi um jornalista de música na plateia da casa, com exceção da Eugenia Rodrigues. Essa pauta, que já tentei vender mil vezes, não interessa a ninguém. Ok, então, não precisa falar sobre mim. Mas, sobre a casa, sim! É obrigatório falar, pq ela é um lugar da excelência, onde a música e o músico são tratados com um respeito que não se vê nesta cidade. Não é uma casa de festa, com música pra vender cerveja, Mas nem tijolinho a gente consegue. “não sobra espaço”, dizem.

 

Vivo escutando, das pessoas que gostam da minha música, que eu não divulgo meu trabalho, que o mundo deveria conhecer meu disco novo, que o que faço é maravilhoso demais pra ser ignorado. Como se eu quisesse manter meu trabalho em segredo, pra meia dúzia de admiradores. Como se eu não estivesse tentando, querendo, precisando e merecendo essa expansão. Tento sem parar, quero, preciso e mereço, mas não tenho braços pra, sozinha, remar esse barco. Nenhum artista tem. Dinheiro ajuda, mas não resolve. Cada vez q eu vejo um show maravilhoso com plateia vazia, eu lembro do quanto as pessoas reclamam do panorama da música ruim, sem levantar da frente do óbvio para ir ver o mundo real, onde artistas reais criam, vivem, trabalham e renovam, sim, a boa música brasileira de cada dia.

podem me prender, podem me bater e podem até deixar-me sem comer que eu não mudo de opinião. daqui do morro eu não saio, não.

timaço

19/12/2013

amanha faço o ultimo show deste ano. fazendo as contas, vejo que fiz em torno de três shows por mês, se somar todos e dividir pelo ano todo. é muito menos do que eu gostaria, mas é o bastante pra me manter em atividade permanente. pra 2014 quero muito mais, sai da minha frente que eu quero passar, pq o samba está animado…

este ano eu fiz tudo o que quis fazer. planejei e fiz. mas não fiz nada sozinha. a lição mais importante de todas é: ninguém faz nada sozinho. a segunda é: planejamento e fidelidade ao plano até o fim, com jogo pra pequenas manobras de adaptação e atualização de cartografias. jogo limpo, peito aberto e decisão.

finalizei meu disco, lancei meu disco com louvor, emagreci pro lançamento, fiz um crowdfunding que deu certíssimo, tive o apoio de quase 300 pessoas, tive lindas críticas profissionais, fiz vários shows diferentes, com gente e repertório novos, gravei o disco do Arranco que sai em março, malhei diariamente em academia, fiz amigos novos, vi os antigos, me diverti a valer, ganhei muuuito mais prestígio e respeito e reconhecimento como cantora, fiz  incontáveis gravações, ensaios, coisas importantes e legais, sai da depressão abissal do ano passado, encontrei um médico maravilhoso, um produtor incrível, uma fisioterapeuta maravilhosa, uma empresária maravilhosa, uma produtora foférrima, uma equipe de deixar qq um de coração mole, músicos os melhores e mais queridos, uma gravadora dos sonhos. e fiz grandes, imprescindíveis, noitadas. mas nunca, em nenhum momento, fiz nada que não tivesse a colaboração de outra pessoa. meus parceiros, meus amigos, minha família, meus colegas de copo e de cruz. agora entendo bem o plural de modéstia. aquele em que o cara sempre fala “nós fizemos”, pra não dizer “eu fiz”.

e o resto? ah, pra mim não existe resto, não separo a minha vida pessoal da minha carreira, não separo a diversão e o amor do trabalho e nunca paro de trabalhar ou de pensar em trabalho. não que eu seja uma obstinada louca, que anda com um timer na bolsa, uma calculadora e um personal coach à tiracolo. mas por dentro nunca tiro férias, não descanso no fim de semana. faço tudo ao mesmo tempo, vou à praia enquanto componho, estudo enquanto cozinho, tudo misturado. estou perfeitamente alinhada com meu desejo, com meus novos sonhos e com o que virá, um universo desconhecido, onde mais uma vez vou trabalhar e viver, me divertir e sofrer, tudo junto, como sempre. essa é a vida que eu quis: amalgamada, misturada, apaixonada, grudenta e apegada com a música. a música é a minha família, minha prole, meu amor eterno e minha fonte de vida, de problemas, de trabalho, de lazer e de prazer. meu tudo há 25 anos, que nem senti passar. mas sem meus comparsas, meus pariceiros, meus cúmplices, meu time e minha torcida, eu não teria feito nada.

acordei travada. nunca na vida tive a sensação de que não conseguiria andar. status:

a p a v o r a n t e

tentei metaforizar: será um desejo inconsciente de não prosseguir, medo da pista ou uma evidência metafórica, física, dos percalços do caminho? logo agora, neste momento produtivo e crédulo, em que a reverberação dos meus movimentos se propaga em círculos cada vez mais amplos, como desejei? sos médico, injeção, bomba analgésica.  zonza, capenga, lá fui eu fazer meu show semanal, no Semente, Lapa. a casa começou a encher. muitos músicos chegando com seus instrumentos, todos da novíssima geração, gente que nem conheço, só conheço de nome ou de vista. Isso tudo junto deve ter algum significado, pensei, principalmente porque o hoax do momento, presente em todas as rodas de conversa on e offline, era o tal fim do mundo, a partir da 00h de hj.

começa o som, a perna reclamando, eu respirando: vamos, amiga, vamos lá. o oxigênio entrando lavando tudo, água, muita água, suor descendo pelas costas e pelas pernas, música entrando pelos ouvidos, a voz brotando de tudo, a vibração modificando o ambiente. mais músicos chegando. um desembainha seu sete cordas, outro sapeca o pandeiro, outro afina o bandolim, outro ataca de sax. qto tempo se passou, qtas músicas tocamos, qtos solos maravilhosos e qtos músicos talentosos tocaram com a gente? nem sei. o público chegando junto. inebriada pela música, pelo coro da plateia, pelos sorrisos em todos os rostos, pelo fim do mundo, me sinto carregada no colo pela vida. trégua. mais uma vez eu fui salva pela música. eu, meus companheiros de tantos anos de fé, meus novos amigos, meus futuros amigos, todo mundo ali pela música, sem nome, sem idade, sem pressa nem vontade de chegar no fim. se eu tivesse sucumbido à dor, teria vivido plenamente a dor e perdido a delícia. então é por isso que o show tem que continuar, é por isso!

nós iremos achar o tom, um acorde com lindo som, e fazer com que fique bom, outra vez!

 

vida secreta

26/02/2012

deixo caladas muitas palavras, até bem bonitas, que não tenho onde botar, assim como mil músicas que fiz e não serviram pra nada. sendo assim, deixo que as palavras funcionem como um tipo de legenda pras fotos que tiro com meus olhos, muitos qps*,  que jamais revelo. e as músicas que canto por dentro, que faço e desfaço e, por desuso, acabo esquecendo, deixo que sejam a trilha sonora que toca em mim. de forma que, aqui dentro, é sempre cinema, é sempre poema, é sempre farsa.

*qps = quadros por segundo

Dia desses, ouvi alguem dizer que o “samba da Lapa” é da Lapa por uma questão circunstancial. Concordo. A Lapa era uma terra de ninguém, imóveis abandonados, caindo aos pedaços, desvalorizada e perigosa. Sem vizinhança pra reclamar como na Copacabana do Bip Bip, no Botafogo do Mandrake, em Santa Teresa, onde antes da Lapa havia rodas e mais rodas, desde que o samba é samba. Sem falar em todo subúrbio, baixada, zona norte e oeste que sempre tiveram suas rodas de samba. E desde os anos 80, doa a quem doer, muita gente já tinha começado a redescobrir o samba pelo viés do pagode, a música popular da moda naquele momento. Esse negócio de botar um chapéu pra se sentir malandro veio depois.

A Lapa começou a re-existir com o povo do Circo Voador, do Tá na Rua, da FEBARJ, uma soma de forças que chamou a atenção com o bafafá em torno da Fundição e do Corredor Cultural. Isso, quando o Semente era o melhor restaurante nipo-natureba do mundo, e o Capela era um boteco barato. O Arco da Velha tinha samba em meados dos anos 80, mas era pontual. Tudo é um grande processo, sem dono, nem nome, com bases em fatores menos românticos do que se vende. Não mitifico nada nem caio no papo da imprensa, que adora inventar um “movimento”. Quando o samba aterrissou ali, empurrado por vários fatores, a Lapa era um bairro neutro, barato, central e, portanto, sem os estigmas tradicionalmente atribuídos ao zoneamento da cidade.

O samba é a única cena musical que existe no Rio de Janeiro, concentrada na Lapa. E talvez por isso, sem desmerecer o poder do samba, haja tanto samba e tanto sambista na cidade. Esta cidade sem casa de show, sem teatro, sem bar com música ao vivo, sem respeito ao músico. Quem faz música pra ouvir, quem elabora roteiro de show, quem preza emissão, arranjo e dinâmica, não tem onde trabalhar sistematicamente. A Lapa não se equipou pra isso e nem pretende. Apesar disso, tem trabalho, palco, público, cachê e troca profissional pro músico. A tal da cena musical. Enquanto as casas da cidade fecham, uma após a outra, pq não aguentam os encargos, a Lapa sobrevive cada vez mais lotada e turística, cada vez se repetindo mais. Isso é ruim? Sei lá. Las Vegas é aquela cafonice, tem um bilhão de cassinos e megashows diários em várias sessões. Umas pessoas trabalham, outras se divertem, uns gastam, outros ganham e pronto, a roda gira. Mas em Vegas o som deve ser bom e não toca só um estilo. A Lapa não aprendeu essa lição pq ela vende diversão, zoeira, furdunço e mitos. O público adora os mitos. Com sua informalidade, a Lapa desconstruiu a imagem do artista. O samba é o grande artista.

A Lapa virou uma grife de inclusão na alegria e na brasilidade. Se vc não vai à Lapa, vc não sabe o que é se divertir de verdade. Muito além das poucas (boas) casas, a rua está cheia de vendedores de latão e cheiro de xixi. Muita roda de samba e boteco chinfrim, onde a cerveja é barata, onde tem “gente bonita em clima de paquera”, onde a música rola pra manter o consumo alto e a diversão. Mas não me iludo. O público acidental, aquele da diversão, pode migrar a qq momento para uma nova moda. E quem aprendeu a gostar de samba vai continuar gostando, pq samba quando é bom, é realmente a melhor diversão. Muito além da Lapa e seus mitos.

 

asas da liberdade

02/11/2010

Eu nunca desejei voar de verdade. Sofro de vertigem. Me contento em voar em sonhos, mantendo a altura por debaixo do teto do pátio coberto do Colégio Notre Dame e, por vezes, era mesmo o teto branco, meio descascado, da garagem do nosso prédio na Joana Angélica. Outras, vai saber, era no Chiswisck Town Hall que eu voava, depois da aula de balé, na volta para casa. Agora dei de sobrevoar cidades que nem conheço. Ora voo baixo. Ora voo alto. Mas nunca deixei de sonhar com o voo.

E quando pela primeira vez fumei haxixe com um namorado e depois sentamos num bar da Lagoa e eu, comfortably numb, bebia aquela bebida muito gelada e doce, enquanto via a mim mesma flutuando sobre uma lagoa azul-noturno iluminada, seu lodoso fundo cheio de monstros do Loch Ness e de lontras e de Iaras, sereias e Iemanjás. As margens piscosas dadas aos duendes, aos pixies, aos elfos e todos elementais do fogo terra água e ar. Eu ali, bebendo aquela coisa mexicana, e eram tacos com salsa de tomates, uma bem simplinha e a outra com chilli ardido.  O ar era meu, tudo estava quente. Tinha eu 18 anos de idade.

Depois encontrei a música,  nem precisei mais voar.  Nado por debaixo de mares e atravesso oceanos em apneia, sem nunca perder o ar. Coisa de sonho. Mergulho aqui  no Leblon e saio vezes na Lapa, vezes no Arpoador, aonde já encomendei que joguem minhas cinzas, pq nobreza maior não há de haver do que ser fertilizante de fogo terra água e ar. O doce retorno.

Meu superpoder conheci hoje, durante um ensaio, quando cantei junto com passarinhos de cantos frondosos, eloquentes, vigorosos, ensaiados. Enchendo aquela sala amarela e seus ramos verdes de canto. O nosso, os deles.

Eu, que nem pensara em voar, por um momento fui alada, singrando os céus de azul da cor do mar do Rio de Janeiro, batendo rapidamente as minhas pequenas asas amarelas, sobrevoando a Baía da Guanabara. Cristo Redentor, as luzes quase se acendendo, Ipanema, Arpoador, Leme, Urca, Botafogo. A cidade toda se dourando à tarde, enquanto nós, os pássaros, cantávamos voando de galho em galho.

Lá embaixo os carros correndo, já meio quase na hora de acender os faróis, a rua vazia pelo quase-feriado, painéis azuis, taxímetros vermelhos. Algumas pessoas esperavam para atravessar as ruas com guarda-chuvas de todas as cores, mas não chovia mais.

Era azul, verde, dourado. Era música. Meu superpoder é cantar.

lush life

03/08/2010

Acima de todas as coisas quero cantar o que quero cantar e ganhar dinheiro com isso agora, o suficiente pra me sustentar e viver confortavelmente.  Só isso.  Definitivamente, não preciso de carrão, de diamantes, de personal coach, de bolsa Louis Vuitton, de calça Diesel, de sapato Manolo Blahnik, de férias em NY. Nem preciso jantar no Antiquarius ou beber Dom Perignon. Acho mó mico pagar R$ 500 num par de óculos e sair por aí ostentando aquele Prada enooorme do lado da cara. Mico.

Não quero uma casa no campo, não quero jatinho, não quero apê na Avenue Foch. Troco tudo isso pelo luxo da liberdade. Preciso de pouco. Isso é querer muito? Não me amarra dinheiro, não. Mas formosura.

Não quero garantir o futuro. Quero garantir o presente. A vida, a alegria, a liberdade de usufruir da vida, plenamente, e quero agora! E quero cantando.

Tá bem, to só desabafando, agora tenho que ir finalizar um texto, tenho prazo pra cumprir, mil coisas pra arrumar pra gravação de um videoclipe, amanhã.

Adaptação, realidade, vida adulta. Infinitamente chato demais. Fim.

o medo da tristeza

17/06/2010

No rádio do taxi toca Overjoyed. Estou tão overwhelmed com tantas intempéries, me sinto impotente, inútil e fraca e queria dar um reboot e mudar de fase. Me sinto pior ainda por isso, covarde e imprestável, pq não me sinto capaz de dar conta de tudo o que devo dar conta e nem é tanto assim, perto do que uns e outros aí passam…  Caio no choro no banco de trás enquanto, do lado de fora, o sol volta a brilhar lindamente, esquentando um pouco do clima glacial que acossa o Leblon e meus ossos, um pouco pela tristeza de tudo, um pouco pela temperatura estranhamente gelada. Me sinto aliviada por não ter colocado filhos nessa roubada. Mesmo que a vida seja uma dádiva blá blá

Preciso lembrar de lembrar de saborear tudo com gosto, minuto a minuto, pq tudo passa correndo e o tempo devora e tritura todas as coisas em volta de nós. E a gente tem que ter felicidade simplesmente por ainda ter algumas coisas inteiras. Pq as coisas quebram e pronto. Depois que quebram, adeus.  Não estou preparada para a vida, acho.

Minha amiga, aparentemente navegando pelas mesmas águas que eu, me pede: “me conta uma coisa bem boa? estou com medo da tristeza”. Tb to, querida, morrendo de medo! E contra tristeza, não há guarda-chuva, já disseram. Mas a gente tem uma faixa bônus: música. Música é a nossa melhor vingança.

acordo famosa, foto no jornal, mil emails, telefonemas, twits, facebooks, orkuts. Brincar disso é uma delícia quando a gente é artista e passa a vida entrando e saindo do lugar ao sol. Aparecer dá a ilusão do esperado reconhecimento. Fofíssimas, as pessoas escrevem: Vc merece!

A arte  não é um trabalho comum. As intempéries mudam as coisas de uma hora para outra. Público não é cliente, a lógica é outra. Os intermediários do marketing, que deveriam estar pensando em como transformar público em cliente, não trabalham nem investem em artista “alternativo”. Estão todos pensando em como fazer a Maria Gadu aparecer ainda mais. Portanto, sistematizar esse fazer “alternativo” ao ponto de esperar que a arte supra necessidades financeiras, no Brasil, tem se tornado a pedra no sapato de muitos músicos que têm se visto obrigados a diversificar os negócios, por pura falta de dinheiro circulando no meio. E de lugares para as pessoas irem pagar para nos ver. Nesse ponto, a  internet ainda não serve para nada além de divulgar os trabalhos, indiscriminadamente, lotar as caixas postais de eflyers e links e fazer o artista entrar na lista de spammers do freguês. E fazer com que ninguém mais queira comprar música.

Aparecer assim no jornal dá, ao público leigo, a falsa impressão de que se “chegou lá”. Artista que sou, adoro (mereço) esse afago, me permito aproveitar o doce sabor da fama pelos 15 ou 20 minutos que ela se dá para mim, vez por outra. Embora cantar não tenha nada a ver com nada disso, mas com um sopro interno, uma centelha que se acende e vai turbinando o dínamo por dentro, movimento retilíneo ascendente infinito. Magnetismo, eletricidade e endorfina. Cantar é a droga mais poderosa que já experimentei.