Aracelli, Meu Amor*

23/03/2020

Lá pelos meus 17 anos, eu andava pelo mundo com o violão debaixo do braço. Não tinha ainda essa autocrítica corrosiva e paralisante, que tantas vezes me impediu de terminar uma canção, de publicar um texto, de me atirar num improviso de voz. A única coisa que importava era a felicidade, e o orgulho, de portar minha arma musical debaixo do braço, meu salvo-conduto pra alegria, meu abre-alas-que-eu-quero-passar. E passava.

Em qualquer canto eu tocava meu violão chinfrim, forjado na escola da minha curta, e intensa, vida. Eu era mestrada e doutorada em VIGU, Violão e Guitarra, a famosa “revistinha” onde a gente aprendia a tocar tudo que é tipo de música. Bastava copiar os gráficos dos bracinhos, com os dedos, nos braços do violão, e fazer as “posições”, que outros poetas chamam de acordes. Eu não sabia de nada, mas conseguia tocar pra me acompanhar. Cantar, e fazer cantar, era a melhor coisa da vida.

Naquele tempo, bastava um maço de Marbolo vermelho e duas porradinhas** de Fanta laranja com Velho Barreiro pra uma cornucópia de canções se derramar sobre a mesa. O violão rodava nas mãos dos amigos e era música da moda, MPB clássica, samba, sucessos radiofônicos e composições próprias. Aos 16 eu já fazia umas canções e tinha inventado meu próprio sistema de cifragem, por pura vitória da inteligência sobre a ignorância. Eu não sabia de nada. Mas queria cantar e tocar.

Num feriado, lá vou eu pra Teresópolis, de ônibus, com uma amiga. Eu e meu violão. Todos os assentos ocupados, turistas e teresopolitanos. Na subida da Serra verde, silenciosa e fresca irrompe, lá dos bancos de trás, uma voz gutural, um trovão dos recônditos do inferno, que faz tremer toda a carroceria: “Eu matei Aracelli! Eu matei Aracelli!” . Era a voz de um demônio de filme subindo das profundezas, aquele subgrave reverberando dentro da caixa torácica da gente. E ele berrava, rouco e furioso: “Fui eeeeeeeu, eu matei Aracelli! Fui eeeeeeuuuu!”.

Eu e minha amiga nos entreolhamos, chacoalhando, arrepiadas de medo. Algumas pessoas começaram a rezar, outras a chorar baixinho, a suar, a se abanar, a passar mal. O motorista não ouvia nada lá da frente e subia a serra, calmamente. O terror domina o interior do ônibus e a voz aumenta de volume, vociferando coisas cada vez mais aterrorizantes. Poucos têm coragem de olhar pra trás, com o medo terrível de não saber o que temer.

Aí eu vejo o meu violão, deitado no bagageiro superior, bem acima da minha cabeça. Num impulso de coragem, levanto, pego o estojo, sento de volta, desembainho o violão e começo a tocar. E decido cantar bem alto, pra cobrir a voz do terror, pra tentar quebrar a atmosfera de pânico com música. Minha amiga entende a ideia e canta junto, “… me leva amor, lá lá lá láiá lá, me leva amor, amooooor, amoooooooor, me leva amor, por onde for quero ser seu par…”, encobrindo a voz do mal com a canção “… olha a lua branca a se derramar, ao luar descansa meu caminhar…”. Uma voz aqui e outra ali chegando junto. E passam Caetano, Djavan, Gonzagão, Gilberto Gil. Vem Paulinho da Viola, Angela Rorô, Peninha, Chico Buarque. Baixa Beth Carvalho, Joyce, Marina Lima, Rita Lee, Kid Abelha. Os passageiros cantam junto com mais coragem, a voz do mal ficando abafada, o mal calado, o mal mudo. O mal levantando e pedindo pra saltar antes de chegar na cidade, cuspindo escorpiões e marimbondos, e o rastro de enxofre se dissipando no ar puro e verde da mata.

Nesse dia, meu violão chinfrim, meu destemor juvenil, minha garganta (meu Marte em gêmeos) e a música popular brasileira calaram o mal. Chegamos sãos, salvos, mortos de medo, armados e perigosos de tanta música. Assim seja.

*Aracelli, meu amor é o título de um livro, de José Louzeiro,  sobre o assassinato e estupro da menina Aracelli, crime terrível e famoso dos anos 70, que até hoje não teve solução.

**Porradinha era bebida de adolescente dos anos 80. Uma dose de cachaça, Fanta laranja até completar o copo, a mão segurando um guardanapo na boca do copo, e uma porrada com o copo na mesa. Aquilo espumava e subia e a gente, pimba, botava pra dentro.