A vida anda falando de morte. A todo momento a morte e seus parentes batem na minha porta, me acordam de madrugada, tiram o sossego das pessoas que amo e me colocam aquela velha pergunta na boca: fico saudável pra morrer tarde ou chuto o balde pra acabar logo com isso?

Eu não sou uma otimista. Nunca fui. Quando eu era mais nova eu tinha muita raiva de ter que me virar pra viver, pq eu nunca tinha pedido pra nascer e, qdo dei por mim, tinha mil boletos pra pagar e zero interesse em cumprir o script da vida. Ainda não tenho, preciso confessar, mas tenho sorte e pessoas que amo e me amam. Não tenho um deus pra me consolar, tenho afilhadas e sobrinha, mas não tenho filhos, não deixo descendência. Não tenho moral que me faça achar que a vida é uma dádiva. A vida se perpetua, banal como planta que nasce na pedra, sem chance, sem solo, sem luz. Eu vivo, e o demônio insano do Bolsonaro e sua corja miliciana dos infernos vivem, não há qualidade moral na vida, não há virtude.

A arte é um lenitivo, mas não cura. Pq dentro de mim, num dia de destruição como o de hoje, em que a fumaça das queimadas do “dia do fogo” dos ruralistas entrou por dentro de mim e a bala do governador assassino atingiu o meu peito, minhas forças são todas pra chorar a onça pintada carbonizada na beira da estrada, os índios chacinados, os jovens pretos assassinados a granel, a constituição violentada, a justiça mais injusta e um país em ruínas, pautado pela exploração da ignorância e pelas falcatruas.

Na história eu acredito. E é a minha mais secreta vingança pensar que, se sobrar Brasil, em algum momento do futuro, essa gente vai ser reconhecida pelo que é: exterminadores violentos, psicopatas, desumanos, carniceiros com problemas sexuais e fome de poder. Posso não estar mais aqui pra ver, mas carrego a esperança comigo. Nada dura pra sempre, até Hitler caiu. Assim como Auschwitz está lá, pra todo mundo ver o que fizeram no passado, o rastro de destruição dessa gente vai contar o que elas fizeram e o juízo final, não o remoto, mas o dos homens, o da história, há de nos vingar e fazer justiça.

Sepultemos os mortos. Mas cuidemos dos vivos.

menino descalço

07/12/2018

No meio da rua, um menino grande pede que lhe compre um chinelo. Está vendendo chicletes, descalço, pois seu chinelo arrebentou. Compro o tamanho que mal lhe serve, porque ali na hora não tinha o tamanho dele e ele preferiu sair mal calçado que descalço. Saio chorando pela rua, pensando na tristeza que é um menino descalço em Copacabana, implorando por um chinelo, enquanto pessoas “de bem” se protegem dele e comentam que ele talvez queira apenas vender o chinelo novo. Ao contrário, imagino que aquele chinelo branquinho vai ficar imundo em poucos dias, se alguém não lhe roubar, ainda hoje, o chinelinho branquinho, novinho em folha, um pouco pequeno, reluzindo naquele pé preto empoeirado e magro, que esta noite vai pisar num barraco muito pobre ou num canto mijado de rua, num meio fio grudado com óleo de ônibus, sob marquise, ponte, viaduto, num canto qualquer, onde as sombras da noite o cubram e protejam. 


Não suporto a realidade desses dias.  Vejo militares e igrejas avançando a passos largos com seus coturnos, a bíblia em punho, salivando com suas bocas escancaradas, famintas de poder, e vejo o menino preto descalço sendo atropelado pelo tanque do fundamentalismo que reina e impera, que promete matar pobres de drone, desertar florestas, queimar índios, matar solos e mares, esterilizar e pulverizar o meu país, que ia ser o do futuro, que era um gigante prestes a se levantar, verdejante, festeiro, misturando tudo que é fé, hospitaleiro, simpático, miscigenado, bonito por natureza. O país que eu perdi em minutos, quando descobri quem me cerca, o que querem, com o que(m) se importam.  

Nasci no ano em que o Brasil acabou pela primeira vez, 1964, pelas mãos dos demônios de caqui. Os efeitos sentimos agora, em mais uma das mortes do Brasil, condenados que estamos a mais uma longa temporada de silêncios e de medos, de patrulhas, de ignorantes no poder, de meninos pretos descalços atropelados e cantoras tristes. 

apocalipse now

09/11/2016

Qdo me perguntaram o que eu desejaria como última refeição, no corredor da morte, caso eu alguma vez o visitasse, pensei: peixe frito com cerveja. Robalinho, trilha, sardinha… Peixe frito, pra mim, tem que ser inteirinho e pequeno, passado no fubá, acompanhado de limão cortado na hora. Cerveja tem que estar glacial. Fritura mora na rua, ao lado da cerveja gelada. Delícias que visito e desfruto com respeito, na rua.

Comprei peixe fresco e temperei com limão, pimenta e alho. Era pra assar. Uma amiga veio trocar ideia, sobrou cerveja.

Golpes, Temer, Crivella, Cabral/Pezão. Trump. O mundo acabando, na minha frente.

Salguei o peixe, passei no fubá, e usei azeite, muito azeite de verdade. E fritei peixe em casa, pela primeira vez. E abri a cerveja. E cortei o limão.

Foda-se.

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