Quando minha mãe era criança, ela tinha um livro com esse nome. Um dia, ela levou o livro pra mostrar pra freira da escola onde ela estudava. A freira ficou encantada e pediu o livro emprestado. Nunca devolveu, alegando que o livro tinha sumido. Minha mãe, criança, ficou p da vida sem seu livro. Até que, um dia, na escola, entra numa sala e dá de cara com o livro numa estante. Sem pestanejar, rouba de volta seu livro e ganha 100 anos de perdão.

Esse livro ficou na família e foi parar na minha infância, também. Era um tempo em que crianças brincavam com outras crianças, ao ar livre. Na calçada em frente de casa, na garagem do prédio, onde houvesse espaço. Saíamos em bando, de bicicleta, pra dar voltas no quarteirão. Era proibido atravessar a rua. Mas podia, às vezes, parar na carrocinha da esquina da Montenegro com a Sadock de Sá, e tomar um sorvete.

Quando chovia, a gente usava esse livro e inventava um monte de coisas pra fazer dentro de casa. Eu tinha miçanga pra fazer bijuteria, linha pra bordar, cavalete pra pintar quadros, mala de tinta à óleo, lápis aquarelável, muitos brinquedos e recursos. E mãe em casa. Era bom. Até hoje tenho carinho por ficar em casa em dias chuvosos. De quarentena, tento agora descobrir que brinquedos vão me entreter enquanto durar essa quase chuva. Trabalhar online, fazer um canal de receitas, botar a leitura em dia, arrumar a casa, estudar, compor.

Aqui encastelada, presa na gaiola surrealista dessa distopia sem fim, vivendo o caos da incerteza, sem saber se vamos todos adoecer e morrer, se vamos ficar sem água potável, se o país vai explodir sob as patas desse cavaleiro apocalíptico e destruidor de tudo, lembro do livro. Começo a procurar e lembro que ele está em Teresópolis, naquele cantinho subjetivo que guarda os últimos raios da minha infância.

Estou bem guardada onde estou. Penso em quem só come se defender a grana do dia, e vai passar fome de verdade. Biscateiros, camelôs, entregadores de tudo. E músicos, artistas, todos os autônomos. E aqueles que simplesmente não têm o que comer, nem sabonete pra lavar as mãos, nem água. Morro de pena das crianças que moram em micro espaços, de onde não poderão sair pra brincar, das pessoas que moram em um cômodo pra oito, dez pessoas, todos juntos, velhos, novos, doentes, sãos. Como conter um vírus no epicentro da desumanidade, onde pessoas nasceram com a marca da invisibilidade ancestral? Gerações e gerações de gente que o mundo não vê, não leva em conta, não gosta.

Penso em casais que vão adorar a re-lua-de-mel, em pais que vão ter que inventar uma rotina com os filhos, que só encontravam nos fins de semana. Vai ter gente que vai aprender a cozinhar, outros vão aprender a brincar com uma criança, outros vão ler livros e outros vão descansar do vai e vem da vida. Logo depois, lembro das famílias que moram juntas porque não têm como se separar. Sem grana pra mudar de casa, mulheres apanham de marido, crianças sofrem abuso, casais que se odeiam e compartilham o mesmo espaço por falta de opção. Todos trancafiados nesse reality show de mau gosto, que vai testar a humanidade e os limites de sanidade e civilidade. Não vai ser fácil.

Mas por que é tão desesperadora essa quarentena? Só porque é ruim ficar em casa? Não. Porque a gente vive pra trabalhar, pra pagar boleto. E isso, a gente não tá podendo fazer agora. Não do jeito que era. O que está em casa, o que está do lado de dentro, nossa intimidade e nosso lar, a gente deixou em segundo plano há muito tempo. Quem sabe a gente, por falta de opção, lembra de respirar melhor, junto com o planeta, sem tanto CO2? Quem sabe a gente surfa nessa onda, como os golfinhos e cisnes que voltaram aos canais de Veneza, e se refresca por dentro, como os patos que agora param pra beber água numa Fontana di Trevi vazia? E o Rio de Janeiro, o que vai acontecer quando estivermos todos em casa?

PS: Encontrei meu brinquedo para dias de chuva, to aqui escrevendo, como nos velhos tempos.

a infância da minha mãe

no supermercado, no corredor de produtos de limpeza, vi uma velhinha negra, ressequida, magrinha, encurvada, caminhando arrastando os pés, em passinhos curtos e irregulares.

ela calçava um chinelo tipo pantufa, com meia surradinha branca, uma saia marrom, abaixo do joelho e uma camiseta, pra fora da saia, com uma nossa senhora flutuando em nuvens azuis. o cabelo branquinho estava mal amarrado num coque pequeno. parecia desprovida de vaidade, embora estivesse limpa. carregava uma sacola com uma outra santa estampada. fé, pensei, como pode ter fé? eu, que to aqui inteira (quase), bonitona (quase), nova (quase) não sei que deuses restituiriam a minha fé. adoraria encontra-la, para estampar no rosto aquele sorriso aparvalhado dos que crêem. ela, velha, de pantufas na rua, estampa a fé no peito.

acometida de uma compaixão humana que nem sei se ela merece ou deseja, pq a infelicidade dela é uma fantasia minha, me dou conta de que aquela velhinha já foi uma criança e, depois,  uma mocinha. saio do supermercado, mais uma vez, chorando pela rua, pensando nos vestidos que a mocinha queria ter,  mas não podia, nos sonhos que ela ousou sonhar, e não realizou, no futuro que ela desejava ter, mas não teve, nos anseios de amores não consumados. A certa altura vejo que meus sonhos frustrados se misturam com os que atribui a ela, e já nem sei mais por quem estou chorando, por que sonhos, por que fracassos.