Aiaábô

22/07/2019

Minha tia, deitada na cama, geme. Não quer mais saber de nada.

Quer comer alguma coisa bem gostosa, tia?

Não.

Quer um suquinho?

Não (com o dedo indicador esticado, infantil, um nãozinho lateral, olhos fechados).

Laranja. Lembrei da laranja Seleta enorme que você comprava na feira e sempre tinha na sua casa. Tem laranja, tia?

Não.

Geme. As dores de esquecer, as dores de morrer daqui a pouco, as dores de ter tido tudo e tudo não ser mais nada nessa hora. Dores. Deito com ela na cama, colo meu corpo no dela, seguro sua mão e morro de chorar, sem ela ver. De repente, ela aperta minha mão, me acaricia e ri, aninha a cabeça no travesseiro, sabe que eu to chorando. Mas ficamos ali, eu entrelaçada nas mãos dela, testa com testa, pensando no porquê de ninguém nunca me mandar cultuar Nanã, minha mãe, essa morte à espreita, esse lamaçal original, esse encontro, esse retorno.

Minha tia geme aiaiaiaiaia e eu me lembro de como meu avô, pai dela, gemia, deitado na sua cama com mosquiteiro de voal, na Rua Montenegro, em Ipanema, e eu nem era mais criança. Quando sofria, meu avô deitava com as mãos entrelaçadas do mortos e gemia, em árabe: “Aiáboô, aiádeê”.

Minha tia geme, sussurra “não tenho nada pra fazer”, e suspira. Rindo, gemo pra ela, citando o vovô: “Aiábô, aiádê”. Ela ri, repete, ri, adora a lembrança e fala: “árabe!”, e continua rindo devagar consigo mesma e gemendo “aiábô”. Esquece. Pára. Some. Volta.

Vamo levantar, tia?

Não.

Cansada, se vira na cama. Geme. Deitada, de mãos dadas com ela, brinco no seu ouvido: “aiábô”.

Ela, séria, declara: “Aiábô… Meu pai, meu avô, meu bisavô”.

Aiábô, minha tia, meu avô, meu bisavô, meu triavô.

Desejo que seja leve, que seja boa, que seja suave essa viagem que a leva.

Aiábô, minha mãe, meu pai, minha irmã, minha sobrinha, meu cunhado.

Aiábô, como dói essa porra de vida.

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