Num domingo em Paris, há muitos e muitos anos, vi um homem negro subir num caixote e fazer um discurso em frente ao Beaubourg, coisa comum. Ele contava que seu pai fora nascido e criado num país africano colonizado pela França. Contou que, na Segunda guerra, receberam visita de um general do exército convidando os adultos da família a lutarem “como irmãos” em defesa da França. E assim partiu seu pai para a morte na guerra.
Muitos anos depois, esse homem, morador de Paris havia mais de 30 anos, com filhos nascidos na França e família e carreira assentados por lá, estava sendo ameaçado de ter que voltar pra África, país que nunca fora seu, pra uma casa que nem tinha mais, pra um berço familiar esvaziado e mutilado pela guerra, por medidas políticas da direita que empunhava a bandeira da “França para os franceses”. Me falta cultura política e memória, mas nunca me esqueci do sentimento de revolta que cresceu em mim, através da dor do homem que gritava: “Quando foi pra lutarmos e morrermos na guerra, éramos franceses. Achei que a França fosse meu país, que fôssemos irmãos. Agora estou incomodando, minha família está ocupando espaço dos franceses e não sirvo mais pra nada. Querem me despejar como a um invasor”.
Jamais me esqueci dessa cena. A essa altura o racismo me doía na carne branca e privilegiada de Ipanema. Nasci com um senso de justiça muito grave, veio comigo. Amei as pretas que cuidaram de mim e da minha família, e percebi logo que nunca sentei ao lado de um negro na escola. Fui socialmente excluída da convivência com o mundo real, meu mundo era branco, de classe média ipanemense, com pretos subalternos. Quando criança, morando em Londres, senti o mesmo desconforto vendo as meninas indianas e paquistanesas da escola, as “quase-inglesas”, sendo discriminadas pelas “verdadeiras inglesas” louras, de olhos azuis. Mas, depois de ver certas coisas, se demos a sorte de crescer com senso e  tento, temos a obrigação de reeducar nosso olhar, desconstruir velhas crenças e dar um passo adiante. E de novo e de novo pra sempre. Muito novinha, amei e namorei um cara negro, e assisti de perto essa dor doer. Senti, na pele do meu amor, o que era não ser bem vindo, ser olhado de cima em baixo, ser rejeitado pela família branca da namorada. Éramos alvo de olhares na rua, nos lugares onde íamos. Aquilo doeu bem fundo em mim, fortaleceu o meu amor, me amadureceu.
Morando em Paris, no fim dos anos 80, encontrei uma cidade miscigenada, com negros em lugares sociais diferentes do que eu via no Rio. Motivada pelo calor do movimento SOS Racisme, carreguei por muitos anos o broche com a mãozinha do movimento Touche pas à mon pote, (mais ou menos “Não toque no meu broder”), como uma bandeirinha pessoal antiracista, meu distintivo. “Pote” era como chamavam os amigos africanos, especialmente aqueles do chamado Magreb, norte da África: Argélia, Marrocos, Tunísia, Líbia… Inesquecível o show na Praça da Bastilha, reunindo estrelas do mundo árabe, de países da África e nosso Gilberto Gil, que tem até canção sobre o movimento. De certa forma, norteei minha vida musical por esses acontecimentos e quis gritar do meu jeito contra o racismo, exaltando a cultura e a música negra.
Hoje, fim da Copa do mundo de 2018, as redes sociais estão cheias de comentários sobre a seleção francesa que venceu a Copa, com jogadores negros de origem não-francesa. Ou seriam franceses, lutando pelo direito de serem reconhecidos como franceses, como nosso amigo do caixote? Essa história toda veio à tona, misturando tudo. Me vi em Paris, com 21 anos, caminhando pelo Quartier Latin de camisa do Brasil, de pileque, depois de sermos defenestrados da Copa de 86, pela França. Lugar errado na hora errada. Me lembrei do meu amado Jardins de Luxembourg, onde escrevi um poema sobre as lindas crianças multicor de Paris, fenômeno novo pros meus olhos cariocas.
Espero que hoje estejamos vivendo um momento crítico, daqueles necessários e radicais, que anunciam uma guinada, uma volta no parafuso. I have a dream, que uma vitória como a de hoje, na Copa de 2018, conquistada para a França por jogadores negros, franceses, refugiados ou despatriados, sirva pra despertar o debate que vai amaciar os corações duros de um mundo que não quer mais se misturar.

volto de viagem desanimadérrima com o Brasil, em especial com o Rio de Janeiro, cidade da qual posso falar, pq é aqui que vivo. cansada de tanta caretice disfarçada, percebo que finalmente colhemos o que plantamos durante toda a nossa história recente: um povo sem educação, sem cultura, com valores tacanhos e preconceitos mil, ainda cheios daquela velha opinião formada sobre tudo. A ignorância, no sentido da palavra, é a maior escuridão, a maior cegueira. temperado por essa sensação de superioridade tropical, o narcisismo carioca virou uma bomba cujos efeitos estamos experimentando. estamos ainda no tempo da depuração, vivendo nossa idade média, nos digladiando e levantando a cabeça do opositor como troféu. torço pra, se voltar brasileira, que seja daqui a mil anos luz, qdo os dinossauros que habitam a mentalidade cristã-tropical, sejam apenas fósseis nas sombras do tempo.

Viajando sozinha, flanando pelas ruas de Londres, debaixo de chuva e sentindo muito frio,  me permiti um breve descanso de um ano intenso de batalhas e conquistas. acabei fazendo uma viagem onde o silêncio de estar sozinha se transformou num misto de reflexão e contemplação desse admirável mundo velho. Esse que o maravilhoso, feliz e colorido Brasil jamais experimentou ou experimentará.

Demorei a entender o que era que me deixava tão bem ali. lá, no meio da rua do cidadão comum, as aparências já foram, há muito, substituídas por outros valores e vc pode ser azul de bolinha branca, que ninguém vai te julgar por isso. vc entra na livraria mega cult e a mulher te atende com um aplique de cabelo tipo Maggie Simpson, com uma maquiagem anos 50, séria e feliz, sendo como quer ser. No restaurante comum, o garçom usa alargador de orelha, tattoo na mão, dreadlocks lilás, amarradas no alto da cabeça como um espalhafatoso espanador e pronto. e vc acostuma e para de olhar pra isso com espanto. assim como vc vê uma coroa com um garotão num pub, bem à vontade, e uma gorda namorando um magro e uma velhinha bebendo sozinha e um velhinho vestido como um personagem de cinema e casais multi-étnicos e multi-etários, multi-sexuais e suas crianças furtacor. vejam bem: pra mim, que ainda estou no mundo das aparências, essa foi a lente pela qual identifiquei a liberdade.

me pego levemente envergonhada pelo Rio, cidade onde a aparência é tudo, malhar é tudo, ser gostosa é tudo. a espécie ainda não evoluiu pra perceber as outras qualidades e faculdades humanas. aqui vc não precisa ser, mas precisa parecer ser.

em Londres, cansada e desprovida de td censura, vestindo a capa da invisibilidade, experimento momentos da grandeza humana, sua história, sua transcendência e suas conquistas. choro no museu, que abriga a sabedoria de toda a humanidade e é de graça e está lotado. choro com o primeiro portrait de um homem negro, ex-escravo, que ganhou sua liberdade na Inglaterra. choro com o concerto de graça, na linda igreja cheia de jovens. choro pq na minha terra, onde a alegria é linda imperatriz, ainda estamos achando o espelho a melhor paisagem, estamos nadando no aquário, tolos, como se conhecêssemos o mar.

Corro atrás do tempo Vim de não sei onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio o vento Na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade