Depois daquele vinho
03/01/2021
Dizem que a retrospectiva da gente não interessa a ninguém. Verdade. Mas precisei fazer a contabilidade deste ano sui generis, e descobri que:
Comecei o ano fazendo o show Para viver um grande amor, com a Manu, mais de uma vez, e logo depois fiz o show Agora esse mundo é meu – canções de Fátima Guedes, na gloriosa Sala Nelson Pereira dos Santos, com meu parceiro Bilinho. Dei uma canja no show do Augusto Martins com o Pauleira, no CRMC.
Aí teve o chá de bebê da Yara, última vez que vi a galera reunida e, qdo a Paula foi pra maternidade, a Rosa ficou aqui esperando a irmã chegar, eu e o Moy online, ele no aeroporto de Roma, vindo da Rússia, a caminho do Brasil, o mundo já fechando pela Covid, de lá pra cá. Agora a Yara já tá quase andando.
Depois teve o sarau da Mellodi, o carnaval com a família Baron, em Terê. Na volta, foi aniversário da minha mãe, com a família toda. No dia 13 de março, eu e Delia gravamos o podcast Plugadas, com Elisa e Crikka. Depois, tomamos uns drinques. Aí, naquele 14 de março, rolou a derradeira noitada de vinho, com o Carlucho e a Mônica. Na volta pra casa, tirei fotos do amanhecer na praia cor de rosa, como se adivinhasse que estava me despedindo. Aí o mundo fechou.
Durante os quatro meses seguintes, não saí de casa nenhuma vez e não vi ninguém. Há quase dez meses, nunca estive presencialmente com alguém que não fosse minha mãe, minha irmã e minha sobrinha, que encontro uma vez por semana. Às vezes vejo os porteiros e os entregadores. Todos atrás de máscaras.
Sem sair de casa, lancei dois singles, pela Mills Records, com direito a entrar em playlists editoriais na Apple Music e no Spotify. Fui finalista do Festival Toca, com uma música minha. Fiz dois shows sem plateia, com o Arranco. Gravamos uns vídeos de quarentena e somos finalistas do Prêmio Profissionais da Música.
Fiz um curso de edição de vídeo e um curso de Música e negócios. Muitos workshops, cursos, palestras e aulas sobre voz e música, também estudei as plantas medicinais, o uso e manejo das ervas. Vi muitas séries e filmes. Participei de algumas lives e gravei vídeos cantando e tocando e fiz alguns episódios do meu programa Variações sobre o mesmo tema que, infelizmente, não consegui levar adiante por problemas com a internet.
Plantei um abacateiro num vaso. Promovi duas rifas e arrecadei uma bela grana pra ajudar causas importantes. Comi praticamente só comida orgânica, até pão, biscoito, doce, tudo sem glúten e feito por mim. Criei a série Comidas para o fim do mundo, e postei dezenas de fotos e receitas de comida de verdade, saudável, barata, bonita e gostosa. Tomei litros e mais litros de chás de ervas. E tb muito vinho. E cerveja. E gin. Também, sem a cachaça, ninguém segura esse rojão.
Desenhei, escrevi, costurei, compus, toquei, cantei, fiz bijuteria, sequei ervas, fiz tinturas, renovei e cuidei da casa e dos gatos.
Em 2020, dediquei cerca de mil horas às aulas de canto e suas preparações, para meus alunos maravilhosos, as pessoas que mais vi este ano, meus parceiros virtuais de todo dia, do Rio a Vancouver, com quem embarquei nessa arca louca, sem saber onde ou quando vamos aportar. Com essa quilometragem, já deve dar pra tirar algum tipo de brevê. Quando puder, quero conhecer pessoalmente os que só encontrei na tela.
Passei o Natal sozinha, de novo de quarentena porque, mesmo sem sair de casa, minha mãe pegou Covid. Embora ela tenha tido uma forma muito branda da doença, sem febre, nenhum sintoma além de cansaço, passamos umas duas semanas de muita tensão, esperando passar o perigo. Passou, ela está ótima. Comemoramos demais a passagem do ano novo, ao lado dela, todos testados, sem Covid.
Por fim, já estou quase falando gatês fluentemente, já que moro com dois gatos, Pepê e Tumtum e foi com eles que chorei minhas mágoas, conversei, dancei, dormi abraçadinha e tomei meus pileques solitários.
Deixo um agradecimento especial à minha homeopata, Cris, e ao André, meu analista, que me ajudaram a segurar essa onda sem pirar completamente. E aos amigos do além, que sempre dão aquela força.
Tenho aqui 20 músicas inéditas pra botar no mundo, um show virtual em fevereiro, com o Arranco, e uma gravação em março. Já tenho o que fazer em 2021. Dizem que a vacina vem aí, ainda em janeiro. Quem viver, verá! Axé!
Brinquedos para os dias de chuva
20/03/2020
Quando minha mãe era criança, ela tinha um livro com esse nome. Um dia, ela levou o livro pra mostrar pra freira da escola onde ela estudava. A freira ficou encantada e pediu o livro emprestado. Nunca devolveu, alegando que o livro tinha sumido. Minha mãe, criança, ficou p da vida sem seu livro. Até que, um dia, na escola, entra numa sala e dá de cara com o livro numa estante. Sem pestanejar, rouba de volta seu livro e ganha 100 anos de perdão.
Esse livro ficou na família e foi parar na minha infância, também. Era um tempo em que crianças brincavam com outras crianças, ao ar livre. Na calçada em frente de casa, na garagem do prédio, onde houvesse espaço. Saíamos em bando, de bicicleta, pra dar voltas no quarteirão. Era proibido atravessar a rua. Mas podia, às vezes, parar na carrocinha da esquina da Montenegro com a Sadock de Sá, e tomar um sorvete.
Quando chovia, a gente usava esse livro e inventava um monte de coisas pra fazer dentro de casa. Eu tinha miçanga pra fazer bijuteria, linha pra bordar, cavalete pra pintar quadros, mala de tinta à óleo, lápis aquarelável, muitos brinquedos e recursos. E mãe em casa. Era bom. Até hoje tenho carinho por ficar em casa em dias chuvosos. De quarentena, tento agora descobrir que brinquedos vão me entreter enquanto durar essa quase chuva. Trabalhar online, fazer um canal de receitas, botar a leitura em dia, arrumar a casa, estudar, compor.
Aqui encastelada, presa na gaiola surrealista dessa distopia sem fim, vivendo o caos da incerteza, sem saber se vamos todos adoecer e morrer, se vamos ficar sem água potável, se o país vai explodir sob as patas desse cavaleiro apocalíptico e destruidor de tudo, lembro do livro. Começo a procurar e lembro que ele está em Teresópolis, naquele cantinho subjetivo que guarda os últimos raios da minha infância.
Estou bem guardada onde estou. Penso em quem só come se defender a grana do dia, e vai passar fome de verdade. Biscateiros, camelôs, entregadores de tudo. E músicos, artistas, todos os autônomos. E aqueles que simplesmente não têm o que comer, nem sabonete pra lavar as mãos, nem água. Morro de pena das crianças que moram em micro espaços, de onde não poderão sair pra brincar, das pessoas que moram em um cômodo pra oito, dez pessoas, todos juntos, velhos, novos, doentes, sãos. Como conter um vírus no epicentro da desumanidade, onde pessoas nasceram com a marca da invisibilidade ancestral? Gerações e gerações de gente que o mundo não vê, não leva em conta, não gosta.
Penso em casais que vão adorar a re-lua-de-mel, em pais que vão ter que inventar uma rotina com os filhos, que só encontravam nos fins de semana. Vai ter gente que vai aprender a cozinhar, outros vão aprender a brincar com uma criança, outros vão ler livros e outros vão descansar do vai e vem da vida. Logo depois, lembro das famílias que moram juntas porque não têm como se separar. Sem grana pra mudar de casa, mulheres apanham de marido, crianças sofrem abuso, casais que se odeiam e compartilham o mesmo espaço por falta de opção. Todos trancafiados nesse reality show de mau gosto, que vai testar a humanidade e os limites de sanidade e civilidade. Não vai ser fácil.
Mas por que é tão desesperadora essa quarentena? Só porque é ruim ficar em casa? Não. Porque a gente vive pra trabalhar, pra pagar boleto. E isso, a gente não tá podendo fazer agora. Não do jeito que era. O que está em casa, o que está do lado de dentro, nossa intimidade e nosso lar, a gente deixou em segundo plano há muito tempo. Quem sabe a gente, por falta de opção, lembra de respirar melhor, junto com o planeta, sem tanto CO2? Quem sabe a gente surfa nessa onda, como os golfinhos e cisnes que voltaram aos canais de Veneza, e se refresca por dentro, como os patos que agora param pra beber água numa Fontana di Trevi vazia? E o Rio de Janeiro, o que vai acontecer quando estivermos todos em casa?
PS: Encontrei meu brinquedo para dias de chuva, to aqui escrevendo, como nos velhos tempos.
domínio público
07/11/2019
Sábado à noite. Festa. Pessoas vão chegando, se falando, pegando suas bebidas, encontrando suas cias e seus lugares pra ficar. A noite está começando, é fim de semana. A moça encosta ao meu lado, em frente ao balcão das bebidas e suspira: “Aff, vou ter que beber esse carboidrato”. Pega uma cerveja e sai, me deixando atônita e quase culpada por não estar reduzindo o ato de tomar uma cerveja, com amigos, numa festa, a “beber carboidrato”.
Pouco tempo depois escuto outra moça comentando sobre a empadinha: “ai, que delícia, amanhã vou ter que ficar o dobro de tempo na esteira”, ao que a mulher ao lado morre de rir e concorda, balançando a cabeça: “ah, a gente tem que correr atrás, é isso aí, amiga”. A moça do carboidrato líquido, encosta ao lado de alguém e justifica mais uma vez a sua transgressão, ouço ao longe: “eu nem ia beber hoje, esse carboidrato todo é foda, pão líquido, né?” Seu interlocutor faz cara de “foda-se” e manda pra dentro o resto da long neck, de uma vez, dando meia-volta e deixando a moça falando sozinha.
Há momentos de dieta, de doença, de detox, e de tratamentos na vida. Eu sei. Eu já fiz milhares disso tudo. Já fiquei sem beber e sem comer nada por milhares de dias da minha vida. Já optei por não sair de casa, qdo a restrição me pareceu impossível de lidar e já fui pra festa beber água sem comer nada. Já odiei ter saído e voltei correndo pra casa, no humor mais suíno da terra, e já fiquei de boas, fumando um e bebendo água, sem me sentir mal por não estar compartilhando dos comes e bebes. Cada um sabe de si, do seu momento, da sua dieta. Não estou falando disso.
Estou falando de um comportamento especialmente comum às mulheres, que estão sempre se desculpando, publicamente, por não estarem no peso que deveriam, por estarem comendo em vez de estarem passando fome pra chegar no tal “peso ideal”. Elas têm tanta certeza de que a aparência é a coisa que mais importa, de domínio público, que entendem que o mundo está esperando uma satisfação sobre a sua conduta alimentar. E se desculpam, e explicam. E aceitam um pedaço de pizza e confessam a culpa. E acham que esse assunto interessa às pessoas que estão na mesa do bar com elas, na festa com elas, tentando ter um minuto de descompressão da vida bandida.
O corpo feminino é historicamente tratado como posse alheia e as mulheres são as primeiras a permitirem que assim seja. Estão sempre comentando a aparência umas das outras, como se isso fosse a coisa mais importante. Toda gorda escuta: “vc emagreceu?”, mesmo sem ter emagrecido, numa mistura de sugestão e de esperança da outra, que quer testemunhar o emagrecimento obrigatório. Toda gorda deve querer emagrecer. Não tem escolha. Se não ficar magra não casa, se não emagrecer não pode entrar na igreja de noiva, se não perder peso perde o marido, se engordar é safada, gulosa, sapatão, suvaco cabeludo, mulher macho. “estamos preocupados com a sua saúde”, diz a hipócrita bebendo coca zero e comendo salsicha.
Os movimentos anti-gordofobia, as tentativas de normalizar o plus size, emplacam a passos de cágado, mesmo nesta sociedade globalmente acima do peso. As mulheres gordas estão tentando existir fora do holofote do ridículo, querem pleitear o direito à beleza. Mas a sociedade continua dizendo que “ela tem um rosto lindo, que pena” e fingindo que aceita suas barrigas expostas pelas blusinhas cropped. Pegue os últimos 20 trabalhos de um fotógrafo de casamento e veja se tem alguma noiva gorda. Depois me conta.
Enquanto as próprias mulheres se desculparem por não estarem com o corpo ideal, enquanto julgarem outras mulheres pela aparência, enquanto comentarem a aparência de outras mulheres como avaliação, como uma banca de exame, nada disso vai mudar. Como o machismo, que precisa mudar na estrutura, entre os homens, a descoisificação da mulher precisa começar pelo olhar de mulher pra mulher. Até lá, seremos uma sociedade de mulheres acima do peso se sentindo sempre em dívida, erradas, pecadoras, safadas e doentes.
E se sua amiga estiver gorda e bebendo e comendo na festa, apenas brinde a vida com ela, resista à tentação de ser educativa e julgadora. Vamos combinar que caloria se conta em casa e cada uma conta as suas.
a morte e a morte do Brasil
20/08/2019
A vida anda falando de morte. A todo momento a morte e seus parentes batem na minha porta, me acordam de madrugada, tiram o sossego das pessoas que amo e me colocam aquela velha pergunta na boca: fico saudável pra morrer tarde ou chuto o balde pra acabar logo com isso?
Eu não sou uma otimista. Nunca fui. Quando eu era mais nova eu tinha muita raiva de ter que me virar pra viver, pq eu nunca tinha pedido pra nascer e, qdo dei por mim, tinha mil boletos pra pagar e zero interesse em cumprir o script da vida. Ainda não tenho, preciso confessar, mas tenho sorte e pessoas que amo e me amam. Não tenho um deus pra me consolar, tenho afilhadas e sobrinha, mas não tenho filhos, não deixo descendência. Não tenho moral que me faça achar que a vida é uma dádiva. A vida se perpetua, banal como planta que nasce na pedra, sem chance, sem solo, sem luz. Eu vivo, e o demônio insano do Bolsonaro e sua corja miliciana dos infernos vivem, não há qualidade moral na vida, não há virtude.
A arte é um lenitivo, mas não cura. Pq dentro de mim, num dia de destruição como o de hoje, em que a fumaça das queimadas do “dia do fogo” dos ruralistas entrou por dentro de mim e a bala do governador assassino atingiu o meu peito, minhas forças são todas pra chorar a onça pintada carbonizada na beira da estrada, os índios chacinados, os jovens pretos assassinados a granel, a constituição violentada, a justiça mais injusta e um país em ruínas, pautado pela exploração da ignorância e pelas falcatruas.
Na história eu acredito. E é a minha mais secreta vingança pensar que, se sobrar Brasil, em algum momento do futuro, essa gente vai ser reconhecida pelo que é: exterminadores violentos, psicopatas, desumanos, carniceiros com problemas sexuais e fome de poder. Posso não estar mais aqui pra ver, mas carrego a esperança comigo. Nada dura pra sempre, até Hitler caiu. Assim como Auschwitz está lá, pra todo mundo ver o que fizeram no passado, o rastro de destruição dessa gente vai contar o que elas fizeram e o juízo final, não o remoto, mas o dos homens, o da história, há de nos vingar e fazer justiça.
Sepultemos os mortos. Mas cuidemos dos vivos.
Aiaábô
22/07/2019
Minha tia, deitada na cama, geme. Não quer mais saber de nada.
Quer comer alguma coisa bem gostosa, tia?
Não.
Quer um suquinho?
Não (com o dedo indicador esticado, infantil, um nãozinho lateral, olhos fechados).
Laranja. Lembrei da laranja Seleta enorme que você comprava na feira e sempre tinha na sua casa. Tem laranja, tia?
Não.
Geme. As dores de esquecer, as dores de morrer daqui a pouco, as dores de ter tido tudo e tudo não ser mais nada nessa hora. Dores. Deito com ela na cama, colo meu corpo no dela, seguro sua mão e morro de chorar, sem ela ver. De repente, ela aperta minha mão, me acaricia e ri, aninha a cabeça no travesseiro, sabe que eu to chorando. Mas ficamos ali, eu entrelaçada nas mãos dela, testa com testa, pensando no porquê de ninguém nunca me mandar cultuar Nanã, minha mãe, essa morte à espreita, esse lamaçal original, esse encontro, esse retorno.
Minha tia geme aiaiaiaiaia e eu me lembro de como meu avô, pai dela, gemia, deitado na sua cama com mosquiteiro de voal, na Rua Montenegro, em Ipanema, e eu nem era mais criança. Quando sofria, meu avô deitava com as mãos entrelaçadas do mortos e gemia, em árabe: “Aiáboô, aiádeê”.
Minha tia geme, sussurra “não tenho nada pra fazer”, e suspira. Rindo, gemo pra ela, citando o vovô: “Aiábô, aiádê”. Ela ri, repete, ri, adora a lembrança e fala: “árabe!”, e continua rindo devagar consigo mesma e gemendo “aiábô”. Esquece. Pára. Some. Volta.
Vamo levantar, tia?
Não.
Cansada, se vira na cama. Geme. Deitada, de mãos dadas com ela, brinco no seu ouvido: “aiábô”.
Ela, séria, declara: “Aiábô… Meu pai, meu avô, meu bisavô”.
Aiábô, minha tia, meu avô, meu bisavô, meu triavô.
Desejo que seja leve, que seja boa, que seja suave essa viagem que a leva.
Aiábô, minha mãe, meu pai, minha irmã, minha sobrinha, meu cunhado.
Aiábô, como dói essa porra de vida.
Esse negócio de ser cantora é muito louco, mesmo. Ontem passei a noite embargada com o show da Leny Andrade, Aurea Martins e Alaide Costacom o grande Gilson Peranzzetta. Inteiras, entregues, presentes, donas das canções que cantam, de cada nota. Uma vida inteira, 50, 60 anos cantando, que coisa mais rica, que fortuna!
E me emociono também porque desse lado da realidade, as artistas não têm figurinista, não têm cenógrafo, não têm as regalias que a grande fama dá. Abrem seus armários, escolhem suas roupas e seus acessórios de brilhos e se maquiam. E estão novamente prontas, sem afetação nenhuma, sem frescura, sem estrelismo, brilhando com a chama natural que carregam, e por terem vivido e visto o que viram. A simplicidade de quem chegou ao cerne da questão com tanta propriedade e escolha.
Esperançosa, me vi ali, daqui a alguns anos, herdeira que sou dessa linhagem de cantoras que escolhem palavras e melodias pra cantar, com minhas próprias roupas brilhosas, com minha vidaloka, com minhas escolhas dolorosas, com minhas renúncias e esse caminhão de sorte que ganhei da vida. Este fim de semana não saio de casa, dedicada ao estudo do repertório da Fátima Guedes, pro meu show do sábado que vem, dia 15, no Beco das Garrafas. E lá vou eu, e lá vou eu. ♫
pais e filhos, 2019
05/04/2019
a semana começou com a notícia do suicídio do filho de uma amiga. 20 anos recém feitos. A depressão insuspeita reinava a apenas dois dedos abaixo da superfície, que mostrava um lindo menino calmo e silencioso. Na carta de despedida, revela que já tinha tentado se matar, sem sucesso, que era tão solitário e triste que não queria mais viver. Desta vez conseguiu. A mãe trabalhava incansavelmente para melhorar a vida dele.
Dois dias depois, recebo a notícia de que o filho de outra amiga, 18 anos, entrou em surto e ameaçou matar a mãe e depois se matar. Foi internado e medicado, lobotomizado pela medicação que vai calar seu desespero. Sabemos que está desmotivado para a vida, porque um rapaz pobre não tem sonho, nem querer, neste país de dinossauros brancos, ricos e famintos. Não consegue estudar por falta de recursos. Não consegue trabalhar porque não estudou. Quer trabalhar, comprar roupa, ir ao baile, ter uma bicicleta, namorar. Mas não consegue nem existir. A mãe trabalha desde os 12 anos, e encara quatro horas de transporte para ir trabalhar, todos os dias. O pai nunca está em casa, trabalha o tempo todo.
Meus amigos, mesmo com um filho só, vivem exaustos, mortos de cansaço e pingando de sono, porque acordam de madrugada para levar filhos na escola, e depois correm pro trabalho, pra tantos trampos quantos consigam administrar, para conseguir pagar boletos e mais boletos e não frustrar as demandas dos filhos: academia, patins, terapia, violão. Tablet, Disney, tênis de marca, celular. Nunca batem a meta. Trabalham demais e dormem de menos e raramente se divertem ou fazem o que gostam, porque ter um filho se assemelha a ter que alimentar um exército. Filhos querem muito, têm muito, querem mais. E preciso pagar escolas caríssimas, dar o melhor, fazer o máximo. E a vida vai passando ligeira, lá longe. Tempus fugit.
Todos estão insatisfeitos, infelizes e frustrados, pais e filhos. Mal se comunicam. Os filhos que não têm nada, se matam ou querem morrer, com raiva dos pais. Os que têm tudo, acham natural o esforço alheio para lhes dar conforto. Querem outro celular o mais rápido possível. Mal conhecem a cidade onde moram, porque nunca levantam os olhos das telas. Estão hipnotizados e abduzidos pela vitrine de consumo que lhes apresenta o mundo. Completamente despreparados para a vida real, para a “pelada de calçada”. Os pais correm, é preciso correr. “Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, é tarde, é tarde”, disse o coelho da Alice, indo para lugar nenhum.
Antiguidade é posto
14/03/2019
A primeira vez em que pisei no IACS (Instituto de Artes e Comunicação Social – UFF) era o segundo semestre de 1982. Eu era aspirante a cantora, quase bailarina, entrando na faculdade de Comunicação porque gostava de escrever.
O IACS parecia um velho colégio, a quadra de esportes na frente do casarão descascado, gente jogando bola. O revestimento do teto da casa estava meio vazado, aqui e ali, com a fiação cansada semi-exposta. Quando chovia muito, a luz faltava e íamos pra casa. Se chovia à tarde, nem íamos. Inútil atravessar a baía pra bater o pique na Lara Vilella e voltar. As tábuas do piso rangiam, cedendo com o peso dos passos. Uma aventura quase arqueológica. A cantina ficava na casinha da frente, e a gente esperava a fornada sair pra comer sorrisos. O professor Serra, e seu cachimbo, já reinavam no departamento de Comunicação.
Eu gostava de escrever, mas atravessar a Baía todos os dias me enfraqueceu o propósito e me afrouxou o desejo. Eu dançava de dia e cantava na noite, e a faculdade foi perdendo o charme. Fui parando, parei. Sem trancar. Certa de que jamais voltaria ao assunto, com tanta estrada musical ainda a percorrer.
Virei cantora profissional, aposentei a sapatilha e continuei escrevendo. Textos de divulgação pra mim e pros amigos, revisão, tradução. Por isso, 13 anos depois de ter largado a faculdade pra lá, dura feito um coco, temendo não ter como sustentar a carreira de cantora, decidi voltar pra faculdade pra cursar Jornalismo e ativar um plano B, no qual Clark Kent sustentaria a carreira caríssima do Super Homem.
Entrei em contato com a faculdade:
– Quero voltar pro curso que abandonei.
– Você pode prestar vestibular e aproveitar as matérias cursadas
– Sem vestibular, eu disse, eu já passei no vestibular, não preciso passar de novo.
– Ué, mas isso não existe, o prazo expirou. Só se você entrar com recurso.
– Então quero entrar com recurso.
– Escreve uma carta pro Reitor.
Escrevi. Na data prevista recebo a resposta:
– O reitor liberou. Agora você tem que ver lá na Comunicação. Se toparem, você volta.
Quem era o diretor do departamento de Comunicação? O bom e velho professor Serra, de quem me lembrava, daquela breve passagem pelo IACS, nos anos 80.
– Quero voltar, Serra, me deixa voltar! Agora eu quero de verdade, vou até o fim, vou ser uma ótima aluna!
Quando pisei pela segunda vez no IACS, em 1996, a quadra tinha sumido e o casarão estava reformado, mas não perdera seu charme arqueológico. Eu delatava minha antiguidade pelo número de matrícula, que começava com o ano de ingresso. Minha primeira temporada ali começou em 82-2.
Em dia de votação pro DA, na fila com um colega, chego na boca da urna e digo, em voz alta, meu número de matrícula: 82-2XXXX. Meu colega dá aquele pulo: Caraaaaca, eu nasci em 82!
Me formei na turma de jornalismo de 2000, aos 36 anos. Trabalhei 12 anos na imprensa. Gravei mais de 10 CDs e um DVD. Continuo escrevendo e estou comemorando 35 anos de carreira de cantora.
Quando fui ao IACS, pela última vez, ele tinha virado praia.
*o IACS é o Instituto de Artes e Comunicação Social, da UFF – Universidade Federal Fluminense. Este texto foi uma encomenda para o aniversário do IACS. Como não tocaram mais no assunto, decidi postar aqui pra ele nao se perder. Tenho as lembranças mais queridas daquele lugar e daquelas pessoas.
menino descalço
07/12/2018
No meio da rua, um menino grande pede que lhe compre um chinelo. Está vendendo chicletes, descalço, pois seu chinelo arrebentou. Compro o tamanho que mal lhe serve, porque ali na hora não tinha o tamanho dele e ele preferiu sair mal calçado que descalço. Saio chorando pela rua, pensando na tristeza que é um menino descalço em Copacabana, implorando por um chinelo, enquanto pessoas “de bem” se protegem dele e comentam que ele talvez queira apenas vender o chinelo novo. Ao contrário, imagino que aquele chinelo branquinho vai ficar imundo em poucos dias, se alguém não lhe roubar, ainda hoje, o chinelinho branquinho, novinho em folha, um pouco pequeno, reluzindo naquele pé preto empoeirado e magro, que esta noite vai pisar num barraco muito pobre ou num canto mijado de rua, num meio fio grudado com óleo de ônibus, sob marquise, ponte, viaduto, num canto qualquer, onde as sombras da noite o cubram e protejam.
Não suporto a realidade desses dias. Vejo militares e igrejas avançando a passos largos com seus coturnos, a bíblia em punho, salivando com suas bocas escancaradas, famintas de poder, e vejo o menino preto descalço sendo atropelado pelo tanque do fundamentalismo que reina e impera, que promete matar pobres de drone, desertar florestas, queimar índios, matar solos e mares, esterilizar e pulverizar o meu país, que ia ser o do futuro, que era um gigante prestes a se levantar, verdejante, festeiro, misturando tudo que é fé, hospitaleiro, simpático, miscigenado, bonito por natureza. O país que eu perdi em minutos, quando descobri quem me cerca, o que querem, com o que(m) se importam.
Nasci no ano em que o Brasil acabou pela primeira vez, 1964, pelas mãos dos demônios de caqui. Os efeitos sentimos agora, em mais uma das mortes do Brasil, condenados que estamos a mais uma longa temporada de silêncios e de medos, de patrulhas, de ignorantes no poder, de meninos pretos descalços atropelados e cantoras tristes.
vida, minha vida
12/09/2018
touche pas à mon pote
16/07/2018
Rua Montenegro, 276
08/06/2018
Elas moíam a carne na máquina manual, à manivela, que elas prendiam no canto do mármore da bancada da cozinha. Entravam grandes cubos de carne vermelha, toda limpa, sem nervos, e saía aquela massa uniforme, moldada pelos furos do moedor. Depois de catadas as fibras restantes, a carne voltava pra máquina, muitas vezes, com cebolas em cubos, que iam ficando quase líquidas quando moídas. E depois vinha a pimenta síria, a canela, o coentro em grão moído, o pimentão vermelho, a água gelada, o burgol* que não se deve deixar de molho pra não amolecer demais. E as mãos para misturar tudo. Para servir, a cebola em gomos, as folhas graúdas de hortelã e o azeite para bem regar o quibe cru.
A salada, fatuche, salpicada com o pão árabe torrado na medida pra desmanchar em contato com o suco de limão, o azeite, os tomates frescos, o cheiro verde e o pepino crocante. O segredo era cortar as pontas do pepino e esfregá-las no corte, para tirar o amargo, o leite ruim. A casca ficava, para fazer a digestão.
Couve-flor com taratô, kbebat, ataife, esfihas abertas e queijo com misky. Babahanush, houmus, azeite, azeite, azeite. Azeitonas pretas, carnudas, gordas. Coalhada seca, zahtar, pão papel em dias de festa, chancliche. E mais azeite.
As folhas de uva envolvendo arroz e carne moída com pimenta síria, a capa de filé no fundo da panela, um pouco de massa de tomate, tempo, paciência. Cheiro doce de família e canela, e o Arak do vovô, que enchia a sala com o anis volátil, prontamente turvo ao contato com a água, mágica para as crianças. Pistache, amendoim, terços de âmbar na mesa, bandejas enormes de latão dourado, café no bule árabe, que se deixava pousar antes de servir, sem coar. Tapetes, tapetes e mais tapetes. Unhas vermelhas, música e coisas douradas.
A mesa posta na sala de jantar para os adultos e na sala de almoço para as crianças, com toalhas de plástico.
No quintal de cimento, os tamancos de madeira, o tanque cantando, o varal cheio, as empregadas e o fumo de rolo no cachimbo na hora do descanso, no quarto ao fundo do quintal, em cima da escada torta e caiada. O pente de ferro para esticar os cabelos com henê, as imagens do sagrado coração de Jesus, a nossa senhora aparecida na micro-televisão com luz negra, a foto retocada, muito azul-turquesa, do longínquo casamento na Paraíba. Os uniformes xadrezinhos, o rádio sempre ligado, o pano na cabeça, ave-maria às seis da tarde, a missa de domingo.
No terraço, fiel testemunha da minha história, o piano que mora aqui comigo e me acompanha nesta saga saborosa, perfumada e cheia de amor que é a minha vida. Música, a única síntese possível.
Feliz Natal!
24/12/2017
Amigo, aí vai uma pequena playlist de Christmas jazz, cantada por mim, para vc ouvir com a sua família e ter uma noite feliz! Tudo de bom pra vc!
Espelho, espelho meu
22/12/2017
Na minha vida sempre houve uma amendoeira. Foi com elas que aprendi a gira dos ciclos naturais de todas as coisas vivas, foi com elas que aprendi sobre o tempo. Na frente do apartamento onde cresci eram tantas, e tão grandes, que, se a gente esticasse o braço, dava pra tocar os galhos que quase entravam pela janela. Elas filtravam a luz e perfumavam a casa em dias de chuva. Os passarinhos cantavam o dia todo, os morcegos morcegavam pela madrugada, jogando amêndoas ruidosas nos capôs dos carros, e a gente acompanhava ninhos sendo construídos, ocupados e desocupados, ano após ano. Quando mudei de casa, as amendoeiras passaram a servir de anteparo para que eu pudesse tomar banho de porta aberta, misturada no verde mais carioca depois do mar, da mata atlântica e do gramado do Maracanã. Dizem que elas vieram lá das Índias. Gostaram tanto daqui que cresceram e se multiplicaram, e foram chamadas de amendoeiras-da-praia.
Aprendi as estações do ano assim: a amendoeira e eu, espelhadas. Ela por fora, eu por dentro. Ela vermelha, amarela e laranja, eu desapegando e desacelerando em meu outono pessoal. Ela pelada e eu calada, hibernando enquanto a primavera não vinha. Aí, ela explodia em brotos e as folhas tenras começavam a desenrolar, e lá vinham as vespas beber o mel da floração, e o cheiro enjoativo do pólen entrava em casa e a esperança brotava no meu coração, ensaiando a plenitude frondosa do verão. Eu, imperdoavelmente jovem, acreditava na promessa das cigarras que cantavam na minha janela, convocando para a felicidade obrigatória e urgente da estação-definição desta cidade: no verão, todos os sonhos se realizarão, os amores virão, as festas serão incríveis, o carnaval será o melhor de todos, a felicidade encantada florescerá no pôr do sol vermelho. Com tudo isso, nada mais importa além de um mergulho no espelho dourado, um mate gelado com limão, uma partida de frescobol.
O Rio cutuca a juventude perene que se esconde em algum canto de nós, como aquele broto de folha que espera sua hora de eclodir. O Rio quer a gente forever young, arrastando chinelos, com o biquini debaixo da roupa, pro caso de dar tempo de dar aquele mergulho rapidinho. Todos os dias, o Rio escancara a sua beleza indecente perguntando: “E você? Vai ficar aí parado, enquanto eu estou aqui, resplandecente, translumbrante sob o ouro do sol?” E a gente ouve e quer obedecer, com eternas saudades das longas férias escolares de verão, das cigarras cantando, dolentes, nas amendoeiras, do corpo moído de sol e de sal.
O Rio deste dezembro de 2017 arde em chamas de diferentes fogos, calores, revoltas, medos, agitos, encantos e fervos mil. O Rio de Janeiro está pegando fogo, sob o sol abrasador do verão implacável que se anuncia, e pelo sangue quente correndo nas veias de quem quer viver esta cidade mais e melhor. São tempos para reerguer a monumental maravilha caída, para devolver o Rio para quem nasceu ou escolheu viver aqui. Espelho de seu povo, a beleza do Rio mora na praia, nas encostas cobertas de florestas, nas águas fartas, no morro e no subúrbio. Belezas diversas, pra todos os gostos. Mas que ninguém se engane: a beleza desta cidade depende, mesmo, é da mistura.
Que cantem as cigarras! É verão na Cidade Maravilhosa!
salto triplo*
22/11/2017
*escrevi este texto inspirada no show de mesmo nome, que faço com Elisa Queirós e Cacala Carvalho, só com nossas composições.
TENHO ASAS, POSSO MUITO BEM VOAR
CRUZAR MIL CORDILHEIRAS E DEIXAR
UMA CORRENTE QUENTE ME LEVAR,
PLANAR SOBRE AS CIDADES, FLUTUAR
DAQUI DE CIMA APRECIO A VISTA E PULO
BRAÇOS ABERTOS PARA A IMENSIDÃO DE TUDO
TENHO TERRAS A CONQUISTAR,
SOU UMA AMAZONA CAVALGANDO EM PELO,
DONA DE UM DESERTO DISTANTE E PERIGOSO,
CHEIO DE OÁSIS PARA DESBRAVAR.
PROVOCO TERREMOTOS E ABRO FENDAS
É DO MEU EPICENTRO QUE A VIDA BROTA
TENHO SETE MARES A SINGRAR
MERGULHO EM APNÉIA,
PESCANDO PÉROLAS EM CORAIS ABISSAIS,
RAINHA DAS ÁGUAS, SENHORA DAS MARÉS,
SEREIA QUE ENCANTA MARUJOS DO AMOR,
DESÁGUO EM SETE QUEDAS, SALTOS TRIPLOS
E SOU IARA, A DONA DA CACHOEIRA
EU TENHO A CENTELHA DO FOGO E ESPALHO A BRASA
TROVEJO, RELAMPEIO E CORTO O CÉU COM MEU FACHO DE LUZ
EU SOU AQUELA QUE CONDENSA E CHOVE,
NASCI EXUBERANTE DO LÓTUS, DA LAMA DOS LODAÇAIS
FEITO UM SOL, RAIO, ME PONHO, RECOMPONHO
E CHEIA DE ALVOROÇO, ALVOREÇO E SOLO
AGRADEÇO PELA GRAÇA ALCANÇADA
DAQUI DE ONDE VEJO É TUDO PLENITUDE
TODO PODER E GLÓRIA ME PERTENCEM
CAIO DENTRO DO MUNDO
COM UM SONHO NA CABEÇA, UM SORRISO NA BOCA
E ESSA CORAGEM NA MÃO
fim de uma era
22/08/2017
Tristezinha ao saber da morte do Seu Mário, o dono da Mariuzzin… Foi um dos lugares que mais frequentei na vida, quando ainda era na Raul Pompéia. Lembro das noitadas inesquecíveis dos anos 90, ao som do melhor de todos, o DJ Zezinho, e dos longos papos com Seu Mario, encostada no balcão, tomando aquela caipirinha batizada.
Dona Edna, mulher dele, era toda impávido colosso, uma esfinge sentada na porta da casa, com aquele ar de quem saiu de um cabaré hiper-realista, maquiada demais, de peruca, perfume doce e bois de plumas.
Sempre admirei a forma como se respeitavam, viviam de braços dados, se tratavam com delicadeza, carinho e deferência. Quando ela morreu, chorei por ele.
Agora, os dois são poeira de estrelas e podem passar a eternidade iluminando a noite lá do éter. Assim no céu como na terra.